15 de novembro de 2016

Amor em três dimensões

Quando a porta se abriu, um clarão entrou no quarto de maneira forte, a invadir todos os cantos, palmo a palmo. Iluminou a cama vazia, a cadeira, esquecidas. Clareou também aquele ser inocente. Nada mais havia no quarto, a não ser elas duas sozinhas: cama e mulher. Estavam entregues à solidão e a ninguém mais. A mulher de mãos vazias, o olhar vazio, a pele envelhecida, o corpo verticalmente vivo, somente vivo. Se havia algo semelhante a um bicho, seria assemelhado a um homo sapiens, verticalmente diferente.

Quando ela era mais jovem, bem casada, tinha seus filhos ao alcance das vistas e das mãos. A vida, um sentido único: amar esposo e rebentos. Amar com graça, com luz, com super dedicação. Soube criá-los, à sua maneira. Suas orações, beijos, voz de mãe, jeito peculiar, ditados, sorrisos, sempre com o ar alegre.

A luz entrou e misturou-se à outra, tênue, da pequena janela. Certamente a mulher não reparou bem naquela suposta mudança. Sequer sorriso brotou dos lábios. Nem seus olhos relampejaram claridade e nem suas mãos voluntariamente estenderam-se ao encontro do filho recém-chegado. A inércia continuou. Ignorou presença, ignorou ausência, não deu conta de nada: rancor, raiva, desgosto, filho, sentimento algum.

O filho, ali parado à porta, lembrou-se das peculiaridades da mãe. Além dos sorrisos, das amabilidades, o gênio forte. O jeito de desprezar os outros. Matar na unha, como ela costumava dizer. Quem pisasse nos calos dela, decerto não revidava, mas dava de ombros. Esquecia aquele ou aquela pelo resto da vida; até mudava de calçada. Simplesmente ignorava a existência daquela pessoa.

Ele continuou parado, recuado, absorto. À primeira vista assustado com a situação da mãe. A lembrar do último instante ao lado dela; dos casamentos passageiros, do desgosto da mãe. E o mais cruciante: desistência de ser padre e por fazê-la chorar pelos cantos a não vê-lo sacerdote. Sonho posto por terra e ter ido de encontro ao fervor católico. Tudo passou assim, como raios de luzes e até fantasmagóricos. Não quis penetrar em dias ruins. O susto de ver a mãe naquele estado foi por tê-la sempre visto como uma mulher alegre, apesar de saber de uma única reclamação: seus cabelos. Detestava os cabelos, por serem ruins, difíceis de ornar-lhes, de ondulações grandiosas. Por isso sempre dizia: “eu sou ruim iguais aos meus cabelos pixains”. Era uma expressão de causar risos, mas era a verdade a esconder-se nos seus poucos desgostos. E a parte a caber-lhe como um filho a não satisfazer os seus sonhos de tornar-se padre, até aquele momento as conversas sobre isso não houve. O tempo os fez separar-se e as expressões clássicas da mãe não houve tempo para ouvi-las.

Ela de costa estava e assim ficou. O filho sem palavras, a mãe sem presença. Ambos permaneceram assim por bom tempo. Os cabelos grisalhos da mãe já prateavam a cabeça, ornavam-lhe de anos bem vividos. O corpo esquálido dentro do vestido ainda era forte, apesar dos anos, da queda sofrida em tempos longínquos e no cotovelo esquerdo via-se ainda a marca da cirurgia. Se porventura palavras fossem ditas, de consolo, de carinho, de exatidão, certamente ela não daria conta e nem sequer pestanejaria a qualquer timbre de voz. Absorvida, então, pelos tempos, pela longitude dos anos, da vida bem vivida, não repararia em detalhes nenhum, em olhares nenhum e certamente em claridade nenhuma. Presença de filho, ausência de emoção. Sequer lágrimas, sequer sorrisos, sequer palavras vindo dela.

O filho mais novo não sabia o que fazer: se corria para abraçá-­la, beijá-la, estreitá-la ao peito e sentir aquele corpo materno ou se ficava ali parado, longe de qualquer emoção. Atentou para o fato do provável repúdio, da frieza da mãe. Permaneceu a remoer sentimentos, ali parado, recostado à porta, sem ação. Olhava para a mãe com os olhos envolvidos em transparente camada de lágrimas, o coração a palpitar acelerado e as mãos trêmulas. Viu a mãe movimentar-se para o lado, na menção de buscar algo aparentemente na parede.  Alegrou-se por pensar por ela vir ao seu encontro, mas não veio. Passou-lhe pela cabeça a lembrança das imagens do Coração de Jesus e da Virgem Maria dependurados na sala do santo. Ela costumava limpá-los todos os dias, em carinho extremo. Os quadros significavam a simbologia perfeita da união matrimonial. Eles acompanhavam a trajetória árdua ou leve, imperfeita ou perfeita, altos e baixos da vida do casal suburbano. Casal simples e rico de amor em busca da multiplicação dos seres terrenos, comum aos leitores da Bíblia. Gestos simplórios, monotonia dos dias, mas para ela inegáveis atitudes de quem gostava imensamente da vida a dois. Lembrava, também, de todas as noites, quando os pais ajoelhavam-se diante das imagens em intermináveis orações. A imposição em acompanhá-los, muita das vezes a cabecear de sono, dava lugar à preguiça. Nunca se acostumou à ideia de oferecer-se tanto ao seu Deus. Os pais, ao contrário, buscavam forças de um interior mais profundo, para ficarem horas ajoelhados em repetitivas jaculatórias, onde todos da família eram lembrados: vivos e mortos.

Hoje, ali, rememorando, quem rezava por ela? Talvez ninguém, porque os vivos estavam mortos pela correria dos dias, do esquecimento dos detalhes, pela indisposição intolerável da vida acelerada por busca de sobrevivência.

Queria, sim, pensou ele, dar-lhe um abraço mais estreito possível e dele arrancar todas as lembranças boas, todos os momentos felizes por passarem juntos; de um lado uma mãe admirável, lutadora, fiel, resignada, compadecida, companheira e amiga. Do outro, um filho muito das vezes ingrato, frio, intolerante, amante do mundo alheio, extrafamiliar, entregue às mazelas das amigas e das mulheres mundanas, mas nem por isso menos amoroso para com ela.

- Mãe - conseguiu balbuciar, com voz entrecortada - estou aqui, mãe!

Nenhuma resposta. Ela voltou-lhe as costas em gesto largo, porém sem tantas intenções.

- Há quanto tempo, mamãe! Trouxe-lhe novidade. Gostaria que a senhora a conhecesse.

Pareceu, naquele instante, a mãe sentir alguma coisa, pois quis voltar-se. O filho lembrou quanto ela gostava de novidades, nem tanto de presentes. Os presentes eram eles, os filhos, as noras, os netos. Para que objetos se eram passageiros, quebráveis, inanimados, mundanos, frios? Não importava com as dádivas. Sempre dizia: “não gastem à toa. Não se preocupem comigo”. Realmente, o que hoje lhe restava: um quarto, uma cama e uma nesga de sol a invadir o seu cubículo. Nada mais, pois o verme da idade corroía as lembranças, afastava a sensibilidade e matava aos poucos os pormenores.

A neta entrou no quarto e, tanto quanto o pai estagnou-se diante da imagem da avó. Naquele momento, a mãe voltou-se para eles e lançou um olhar compenetrado, porém loquaz, sem brilho e longe, muito longe. O filho sorriu, mas ela não compreendeu, envolvida estava por uma espessa camada nebulosa em todos os sentidos. Correu a abraçá-la, estreitou-a ao peito, mas a mãe permaneceu inerte, ausente. Beijou-a tantas vezes na testa, no rosto, nas mãos. Balbuciou palavras sem tanta convicção. A neta veio medrosa, porque também há muito não via a avó. Os três ficaram abraçados, aconchegados em três dimensões. Uma convicta do que estava fazendo, consciente do seu dever, e as outras duas inocentes pelo tanto de anos vividos e adormecidos, e pelo muito a viver.

A nesga de sol iluminou os três.

 

Anchieta  Mendes, natural de Juazeiro do Norte/CE, autor de Valados de giz – Romance -2001, Dois dedos de prosa – Contos, 2007 e  Alquimía – Romance, Participou de várias antologias de contos e ganhou vários prêmios literários.