1 de novembro de 2016

Obra Completa

Fernando esperava o apito breve da maquininha quando a chuva começou a cair. Não percebeu, tão concentrado estava naquele momento crucial. Um momento planejado quarenta anos antes, quando optara por manter o trabalho no banco no lugar do sonho de viver da escrita. Com a aposentadoria começava um novo capítulo: usaria aqueles três livros essenciais da literatura russa, francesa e inglesa como inspiração para finalmente desenvolver todas as ideias de contos, romances, peças etc. que passou anos guardando em cadernos e agendas de bolso. Veio o apito. Transação aprovada.

A mulher entregou-lhe a sacola e agradeceu. Fernando foi até a porta e viu que o mundo lá fora estava mudado. A chuva caía forte e sonora, os pingos volumosos se espatifando no concreto. O meio-fio era um rio lamacento invadindo a calçada à sua frente, e os carros passavam jogando água nos pedestres. Como não trouxera um guarda-chuva, estava preso ali, e teria de esperar uma trégua. Voltou ao interior do sebo, onde passou a percorrer as estantes abarrotadas com o cheiro de páginas envelhecidas para passar o tempo.

Um volume em particular chamou sua atenção na seção de literatura brasileira por seu péssimo estado de conservação: Obras Completas de Murilo Dainesi, Vol. I – Contos. A capa, outrora branca, estava amarelada, com o plástico desprendendo das bordas. Haviam sinais escuros de mofo em toda lateral do miolo e algumas páginas rasgadas foram consertadas com durex. Não à toa, custava apenas cinco reais apesar das quatrocentas e doze páginas.

Nunca ouvira falar no autor e não havia nada na contra-capa para ajudá-lo, nem uma foto. Um breve comentário do editor nas orelhas do livro, porém, informava que a obra de Murilo Dainesi, apesar de pouco conhecida, posssuía uma profundidade e abrangência comparáveis a grandes clássicos da literatura universal. Curioso, foi passar os olhos em seu interior.

Estavam ali reunidos os três livros de contos publicados pelo autor entre 1936 e 1955: O Trem de Minas, Saudades Sinceras e A Besta Detrás do Armário. Fernando foi ao primeiro conto, Azul Escarlate e leu, estupefato, de cabo a rabo, a história que planejava contar em seu próprio conto, Minha Menina. Não apenas o tema era o mesmo, mas também o eram os personagens, cenários, situações, recursos linguísticos e reviravoltas que havia imaginado. Lá fora, a chuva parecia piorar, e Fernando sentou-se sobre um banquinho ao lado da estante para continuar a leitura.

Um a um, os contos de Trem de Minas eram plágios de suas muitas ideias anotadas para serem escritas depois. E pior, Murilo Dainesi, além de escrevê-las, parecia melhorá-las, dando a elas um ritmo, cadência e lirismo que ele, Fernando, jamais se julgaria capaz de produzir. A chuva já havia parado há muito tempo quando saiu do sebo com os três livros na sacola e as Obras Completas na mão. Ao longo dos próximos dias, dedicou-se à leitura, anotando a lápis os títulos que imaginara ao lado dos que o autor misterioso escolhera.

Ao fim do volume havia uma nota biográfica de uma página: Nasceu em 1910, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, estudou direito em Ouro Preto, mas dedicou sua vida às letras, produzindo uma extensa obra antes de morrer misteriosamente em 1972, deixando grande parte de sua obra inédita. Numa busca na internet, descobriu pouco sobre a vida de Murilo, mas, segundo a Wikipedia, seus livros, mesmo os póstumos, passaram desapercebidos por editoras e leitores, tendo um impacto e reconhecimento quase nulo. Foram sempre impressos em tiragens menores que 300 exemplares, sem direito a reimpressões por serem considerados fracassos literários. A reunião de suas obras, organizada em quatro volumes, fora idealizada e paga por sua família após sua morte, mas também não vendeu.

Num site de sebos encontrou os outros três (Vol.II – Romances, Vol.III – Peças e Vol.IV – Crônicas, Ensaios e Poesias) à venda em Minas, Rio, e Mato Grosso. Comprou todos, pagando às vezes mais pelo frete do que pelo livro. Encontrou também, na página pessoal de um colecionador, um compilado dos diários e cartas de Murilo Dainesi, entitulado Cartas de uma voz silente e editado somente em Moçambique. Conseguiu comprá-lo por uma larga quantia e pelo menos um mês de espera para a entrega.

À medida que as encomendas iam chegando à sua caixa postal, Fernando analisava incrédulo os volumes sobre a mesa de jantar, munido de lápis e seus velhos cadernos. Todas as obras de Murilo encontravam seu igual nos escritos de Fernando. Não havia mais o que escrever que aquele traste já não tivesse escrito. O filho da puta fracassado arruinara seu sonho.

Derrotado, Fernando reuniu os quatro livros e seus muitos cadernos em duas pequenas pilhas no interior da lareira e riscou um fósforo. Sentou-se sobre a cadeira e observou as Obras Completas de Murilo e Fernando queimarem numa grande labareda até se tornarem um pequeno monte de cinzas. Depois levantou-se e foi dormir, desejando nunca mais acordar.

Na semana seguinte, um novo pacote chegou pelo correio: encomenda internacional. Fernando assinou a entrega e quis acender a pira ritualística novamente, mas a curiosidade o venceu. O livro estava como novo, e não devia passar das cento e vinte páginas. Abriu-o irritado, com medo de já saber o que iria encontrar no interior, mas após a folha de rosto veio o susto. Ali estava, no tamanho de uma página inteira, um pouco granulado e em preto-e-branco, uma foto do seu próprio rosto.

 

Ivan Nery Cardoso, 24, é biólogo formado pela Unicamp e escritor por paixão. Aprecia a estética dos livros velhos e o cheiro dos livros novos. Escreve no blog Contos do Cardoso.