14 de outubro de 2016

Nobel, um desperdício

“for having created new poetic expressions within the great American song tradition”

Essa é a justificativa para o prêmio Nobel de literatura 2016, divulgado ontem (13/10) ser ofertado a Bob Dylan. Logo cedo, quando vi a notícia, recebi com certo estranhamento. Não porque questiono a qualidade de Dylan, muito pelo contrário, gosto muito e não tiro nenhuma fração da sua importância como influenciador de transformações culturais no Ocidente na segunda metade do século passado. Sei também que sua importância não é apenas musical, mas por sua postura e comportamento contraventores à situação do mundo contemporâneo (inclusive por causa da política de governo ianque).

Segundo matéria do jornal The Guardian, a secretária permanente da Academia Sueca, Sara Danius, diz que não foi uma decisão difícil para a instituição e que espera não receber críticas por causa da escolha, mas que a recepção seja com entusiasmo. Por fim, Sara compara as canções de Dylan às obras de Homero e Safo, dizendo que o músico faria parte da tradição poética inglesa, que inclui Milton e Blake.

O meu argumento para a estranheza não tem qualquer aprofundamento teórico ou crítico sobre literatura ou música: penso apenas que, na qualidade de músico, Dylan é reconhecido e já recebeu diversos prêmios. Entendo também que o Nobel enjeita a possibilidade de iluminar algum escritor/poeta de “carreira” na literatura. Ironicamente, essa abertura me faz pensar que o Grammy ou o Oscar em algum momento irão para escritores ou comerciais de TV, respectivamente.

Sabemos muito bem que toda premiação dessa natureza tem uma carga que não se restringe ao campo das artes, as reverberações político-econômicas são bastante nítidas. Dessa forma, entendo que a justificativa amparada numa “American song tradition” reforça mais uma vez o olvidamento do Nobel às literaturas produzidas fora dos grandes centros, diga-se Europa e Estados Unidos, e em línguas “ocidentais”, com raras exceções desde 1901. Penso que os defensores da honraria a Dylan deixam isso de lado e recorrem desde a tradição clássica (da ligação entre música e literatura) às aproximações contemporâneas entre diversas artes.

Ainda sobre as implicações políticas, vejamos um trecho da carta de Sartre em 1964, quando da sua recusa a receber Nobel:
“Por isto que, na situação atual, o Prêmio Nobel se apresenta objetivamente como uma distinção reservada aos escritores do Oeste ou aos rebeldes do Leste. Não se premiou Neruda, que é um dos maiores escritores americanos. Nunca se pensou seriamente em Aragon, que bem o merece. É lamentável que se tenha concedido o prêmio a Pasternak e não a Cholokhov e que a única obra soviética coroada seja uma editada no estrangeiro, proibida em seu país. Poder-se-ia ter estabelecido um equilíbrio mediante um gesto análogo no outro sentido.”

Por outro lado, não estou esquecendo da possibilidade desse prêmio abrir o debate para uma maior integração entre diferentes campos das artes e outras mídias. Sei que é possível, que há experiências muito bem-sucedidas tanto dentro quanto fora da academia.
E que meu estranhamento ao prêmio possa soar como purismo ou tradicionalismo. Entendo apenas que é um desperdício. Há gêneros dentro do ambiente literário que são ou estão marginalizados e que poderiam ser (re)valorizados com um Nobel. Sem contar na oportunidade que Academia Sueca perde de olhar para escritores, dos quatro cantos do mundo, de línguas que não sejam modernamente as de matriz europeia.

Por fim, realço que em momento algum questiono o “valor literário” ou poético da música de Dylan, embora definir “valor” seja dificílimo. Nem mesmo quero entrar na discussão se é ou não literatura, é uma questão insolúvel. Sei também que esse meu esforço em expor meu ponto de vista é inútil.

Sem qualquer intenção de fazer comparação, ao escrever esse texto lembro-me de Charles Baudelaire, que escreve o texto “O público moderno e a fotografia”, em carta ao Sr. Diretor da Revue française sobre o Salão de 1859, em 20/06/1859, argumentando que a fotografia não é arte. Hoje podemos ler esse texto de Baudelaire com certa sensação de ingenuidade do poeta, haja vista a “inundação” de imagens na contemporaneidade. Entretanto, não podemos fazer de conta que naquele momento a preocupação dele não era válida, e que não era mera crítica pela crítica.

É diante dessa última colocação que espero ser lido, resguardadas as abismais proporções e contradições do que estou a expor.