20 de setembro de 2016

Diálogo entre espécies

¾ O explorador deveria atravessar uma montanha que isolava a Cidade do Sul do extremo nordeste, bem depois do encontro dos dois rios que entrecortavam a região. Havia recebido notícias, sempre escassas, de que do outro lado vivia-se diferente; a abundância que uma vez tivera não seria encontrada nesse novo lugar. No Centro da cidade onde vivia os residentes, além de suas diferenças estéticas e comportamentais, eram mais conhecidos por suas manias metafísicas. Insistiam na crença de divindades que habitavam o interior de seus próprios crânios: as magníficas bombas de sódio-potássio; as mesmas bombas responsáveis pela diferença de potencial geratriz de uma corrente elétrica, o impulso nervoso. Sobre o outro lado nada se conhecia ao certo; ninguém jamais havia se preocupado em conhecer aquele lugar asqueroso, bastando apenas o ronco retumbante que escapava por detrás dos morros: o Grande Motor abastecia o Centro com a energia produzida pelos carvoeiros ¾ escreveu.

A viagem estava preparada, mas o entusiasmo tornou-se minguante quando o explorador admirou de perto a cordilheira. Não seria mais vantajoso cavar um buraco pelo meio da montanha para chegar ao outro lado? Talvez... Mas e se acontecer de outra pessoa também estar cavando pelo mesmo local? Batem as duas de encontro, e então? O que se segue daí? De longe ouve uma voz grave e lenta:

¾ Ouça nobre! Lembrar-me-ei de tu e de todos os teus em minhas orações ¾ ecoou a volumosa voz.

A criatura que falava era imensa; com razão, era maior que a própria montanha. E estava ali sentada, nua, com uma das pernas esticadas e a cabeça apoiada nas mãos sobre o joelho levantado; as costas mantinham-se inclinadas a fim de pôr sua fronte abaixo do nível das nuvens. O explorador se irritou e respondeu, sarcástico, imitando o ser desconhecido:

¾ Ó terrível besta, por que se expõe em plena luz do dia? Não atrapalhe a beleza que te rodeia ¾ zombou.

¾ Não me temes, insolente? Posso decidir se vives ou morres. Faço-o já, sem mesmo perceber que o fiz. Tanto isso é verdadeiro que, há pouco, salvei-te a vida, lembras? ¾ retrucou o gigante.

¾ Não posso lembrar — disse o explorador. ¾ Como recordaria daquilo que não existe? Minha vida é apenas um amontoado de infindáveis escolhas interferidas pelo acaso que me rodeia. Mas é evidente que posso agradecer-te; faço-o de mui bom grado, sem requerer justificativas, como também o faría à lama na sola de meus sapatos, agora ressecada.

Dito isso, deu as costas tão logo para, após breve reflexão, virar-se novamente:

¾ Aproveito sua interferência para perguntar: estaria disposto a fazer de minha passagem ao outro lado da montanha um trabalho menos cansativo?

A criatura sorriu. Para aquele homúnculo seu corpo era apenas um imenso saco de carne, tripas e ossos, e sua voz um mero estampido; um som prévio anunciando o tiro no escuro que pode ou não assassinar.

¾ Ainda queres algo me exigir? Não retire minha paz! Falta-me capacidade para atravessá-lo por este caminho. ¾ respondeu.

Não havia descontentamento, apenas a resiliência por parte do minúsculo homem em lidar com birras; opiniões divergentes são caprichos previsíveis:

¾ Possui plena capacidade, mas não deseja usá-la; Não tenho meios para agir contra isso. Agora, irei embora ¾ e o explorador tentou partir, mas já não possuía controle de seu corpo.

Suas patas não respondiam com a antiga precisão que uma vez tivera; era difícil acostumar-se com os novos movimentos permitidos pelas articulações. A carapaça dura pesava-lhe as costas e um par de asas chacoalhavam sem controle; seus olhos estavam inchados, a ponto de adquirirem quase um metro de diâmetro. Quando viu novamente a montanha, percebeu algo que ainda não lhe tinha ocorrido: tratava-se, na realidade, não de uma elevação terrena mas de inúmeras páginas empilhadas sobre uma mesa de madeira. A criatura com quem antes comunicava-se jamais estivera nua; em verdade mantivera-se todo o tempo vestida com um elegante traje que, do limitado ponto de vista do explorador, perdido em sua insignificância, deixava-a ainda mais ridícula.

¾ Vossa Excelência consegue olhar pra dentro de si sem susto? ¾ arguiu, tímido, o explorador.

Havia uma constante queimação sobre si; uma intensa luz amarelada quase lhe fez perder os sentidos. Pode perceber ao seu redor um sem número de insetos gigantes se contorcendo enquanto a mão do imenso homem pinçava e arremessava-os para o interior de sua própria boca; foi então que a revolta apossou o espírito do explorador. Num último ato de lucidez arremessou-se para o interior da boca da enorme besta; autodestruição foi a resposta para uma existência medíocre; pode sentir ossos enormes triturando seu corpo num movimento compassado e, então, sua consciência apagou.

Quando acordou, não mais acreditava que algo existia. O calor do início da tarde lhe fizera ter pesadelos; olhou em volta e lembrou que a casa estava vazia; por que não estaria? Puxou para si a máquina de escrever sobre a mesa de centro, em frente ao sofá velho em que dormia, e bateu algumas palavras:

¾ Motivado por um intenso descontentamento contra a existência, passei a descrer na materialidade dos absurdos da Cidade do Sul. Decerto sou capaz de ver a Cidade Suspensa flutuando sobre o Centro, inundando diariamente as vielas da cidade de baixo com esgoto, fezes e lixo, despejados a quase dez mil pés de altura; ou de entender o engenhoso mecanismo da Torre do Relógio, que cronometra o horário oficial com base na produção e no consumo dos cidadãos, podendo converter dias em horas, anos em meses, séculos em décadas. Mas o que me espantam são os diálogos, as andanças, os movimentos das mãos e pernas; a rudeza com que essas figuras humanas se amontoam em espaços feitos de metal, ou de concreto, ou de madeira; e escalam outros materiais além, roçando-se em tecidos de fibra sintética, de algodão, de seda. Chafurdam em tudo que está ao seu redor, sem nenhum método ou cuidado; imitam-se sem pudor; lambuzam-se com restos de cadáveres e tumores suculentos de outros seres vivos.

¾ E o mais aterrorizante disso é que me obrigam a imitá-los: colocam-me nesta região da cidade, neste apartamento, e devo ficar agradecido por não ser posto numa cela como tantos outros. Decidem que devo ter posses e determinam o que mereço possuir; escravizam meu corpo e minha mente para que sempre esteja a executar seus fetiches de produção ininterrupta e, caso me oponha, apenas me deixam morrer de fome na sarjeta por não ter papéis que sejam trocáveis por comida; preferem me impor à humilhação de mendigar a escravos.

¾ O explorador encontrava natureza ali, mas tudo se apresentava de maneira tão singular que não acreditava ser possível: a solução mais viável para cessar sua intranquilidade foi desacreditar no Todo.

 

* Brasile al-Andalus é um escritor e jornalista. Trabalha na Imprensa Oficial, na nova capital do Piauhy, redijindo narrativas oficiais e analisando propagandas-pessoais.