15 de setembro de 2016

Demência

“Quem é você? A Cida?”
“A Cida já morreu. Morreu, entendeu? E você também vai morrer em breve. O que é uma pena, mesmo. Porque eu poderia passar a vida inteira cuidando de você.”
Lúcia pôs água no fogo.
“Quem é você?”
“Você não sabe quem eu sou? Nem eu! E daí? Tem certeza de que se esqueceu de mim? Agora, só agora, que está demente, se esqueceu de mim?”
Derrubou água no coador de café. Um cheiro de café tomou a casa.
“Eu quero café!”, disse a velha.
“Eu também queria leite, e você não me deu. Mas eu tenho uma coisa para você.”
Lúcia derramou um resto de água fervente no braço da velha. Os gritos eram lancinantes. Os vizinhos ignoravam.
“Ai, você me queimou!”
“Ah, mas você também me queimou. Lembrou-se de mim agora?”
“Não, moça, não sei quem você é.”
“Então vou ferver mais água.”
“Mas eu ainda nem tomei café!”
Lúcia ferveu mais água. Mas quando foi derrubar no braço da velha, ela já havia esquecido o que acontecera.
“O que você vai fazer, moça?”
“Quer saber, não vale a pena. A graça de se torturar alguém é a expectativa da tortura. E você é uma inválida, que se esqueceu do que eu fiz há quinze segundos.”
A velha ficou sem entender.
“Sinto cheiro de café... um café que eu conheço, um café reconfortante. Tem leite? Gosto de pingado!”
“Antes gostasse de pinga e tivesse morrido de cirrose aos 40 anos. Me pouparia de ver essa sua cara por mais trinta. Mas ora, do que estou reclamando? Você está com o pé na cova!”
Toca o telefone.
“Alô? Oi, Júnior, tudo bem... Não, não precisa interromper sua viagem... Sim, ela está muito bem! Tem momentos de lucidez e se vira sozinha... Eu estou cuidando muito bem dela, não se preocupe! Beijos. Bom divertimento. Ah! não se esqueça dos meus presentes!... Sim, também amo você... muitas saudades! Beijos.”
A transformação de personalidade que assumira ao telefone acabara.
Lúcia pegou a pomada para queimaduras e passou no braço da velha.
“Já se depilou hoje, velha?”
“Como assim?”
“Vou mostrar.”
Uma nova face da crueldade estava em andamento. Mas não era culpa de Lúcia. Ela tinha cem personalidades em uma só, quando se tratava de sua mãe. Mas havia um passado, e havia mil motivos. Ora, se havia mil motivos e cem faces, ainda haveriam novecentas faces a se manifestarem.
Lúcia foi ao banheiro, pegou um aparelho de barbear não-descartável, desrosqueou a gilete e mostrou à mãe. A velha ficou sem entender.
“O que foi? Por que me olha com essa cara parva?”
“O que é parva?”
“Além de velha e demente, é ignorante. Sempre foi. Além de não ter estudado, julgava-se muito culta por ler Paulo Coelho. Aprendeu mensagens positivas com ele? É melhor para você que tenha aprendido.”
“Quem é Paulo? Meu filho?”
“Seu filho não se chama Paulo, se chama Júnior, e há três meses está no Caribe. Ele não vai parar de viajar tão cedo. Ele não virá salvá-la. Aliás, acho que ele adoraria participar das minhas atividades nesta casa. Parece-me que você tem com ele uma dívida muito grande, como tem comigo. Agora me dê seu braço.”
A velha esticou-o.
Cortes rasos. Nada de pronto-socorro. A velha começou a chorar.
“Está chorando de dor? Por causa do sangue? Por quê? Certamente, não é arrependimento.”
“Quero dormir, não aguento a dor!”
“Vou dar uns pontos.”
Pegou uma agulha de costura, sem esterilizar, linha, e costurou o braço da velha.
“Vai dar uma infecção, mas isso acontece.”
A velha chorava.
“Eu quero ir dormir!”
“Durma na cadeira de rodas. E pare de babar! Me irrita, sua idiota!”
“Me ponha na cama, moça, por favor!”
“Não. Você vai dormir aí e ter dor de pescoço. E quando acordar, teremos mais uma sessãozinha de torturas.”
“Mas por quê?”
“Ó, bênção, não lembrar-se do mal que já se fez. Cale a boca e durma.”

***

Quando acordou, a velha pediu água.
“Aqui está. Beba.”
“O que é isso?”
“É limonada.”
“Mas está com sal?”
“Ué, não se lembra da limonada com sal? Claro que não... Agora beba. É isso ou nada. Ou vai morrer de sede.”
A velha bebia aos poucos, babando.
(Certa vez, na infância, a mãe havia servido “limonada” com sal ao almoço, dizendo que era para melhorar a digestão. Fez as crianças beberem tudo, o que as levou ao vômito. A filha jamais esquecera aquele dia e, quando a mãe iniciou a demência, ela começou a projetar mil coisas. Fazê-la tomar limonada salgada era a menos cruel delas. Assim como a limonada do passado havia sido a menos cruel das torturas da mãe contra seus dois filhos. Mas faltava o pai. Ele também tinha sua parcela de culpa. Lúcia não pode se vingar dele, que tivera um enfarte fulminante. O ódio, então, era redobrado em relação à mãe).
“Olhe que gracinha, bebeu quase tudo... mas não podemos desperdiçar a limonada de que você tanto gostava...”
E jogou o restante nos olhos da velha.
A velha chorava muito.
“Engula o choro.”
“Acho que estou deprimida...”
“Deprimida? Esta é a palavra? Como sabe? Você sempre disse que não existia depressão... e também o inferno. Eu gostaria de lhe provar o contrário. A depressão bem existe, como vê. Já o inferno fica um pouco mais difícil de provar. Quer ver? O que você tem nos braços?”
“Estão machucados... mas eu não sei onde me queimei e me cortei.”
“Pois é. Se existisse inferno, você saberia, se eu lhe mostrasse isto.”
Lúcia assumia outra pele para as torturas. Era ainda mais cruel. O que exibia era uma máquina de choque paralisante. Disparou.
A velha, paralisada, com os olhos fixos, babando, parecia acusar Lúcia. Mas ela tinha o poder. Poderia liberar todo o seu sadismo naquela velha. Júnior nunca voltaria de suas viagens. Lúcia só lamentava que a vida da velha estivesse por um fio; ela não resistiria por mais tempo.
O efeito do choque passou. Lúcia disse para si mesma: “Ah, estou fatigada, vou ao banheiro.”
Então ouviu a voz:
“Minha filha?”
Era o último suspiro da velha.
Voltou correndo para vê-la e, antes que efetivamente morresse, gritava: “Não me chame de filha! Eu a proíbo! Não me chame de filha”. E espancou-a até que ela fosse apenas um cadáver seco e costurado, sangrando e queimado, de olhos abertos e muito vermelhos.
Então, tomou-se de piedade e se arrependeu. Por duas razões: a primeira, menos importante, é que maltratara muito sua mãe nos últimos meses e, em compensação, isso não lhe deu satisfação alguma, ela não se sentira vingada. Começou a chorar como chorava quando tinha quatro anos de idade e era uma vítima de sua mãe. Era de novo uma criança desprotegida.
O segundo motivo é que qualquer perito verificaria os maus-tratos de Lúcia. Agora, não era mais a criança maltratada, não era mais a vítima que se vingava do algoz: seria uma procurada da Justiça, teria de correr, talvez com a ajuda de Júnior. Mas como explicar isso a ele? É Claro que ele a entenderia, ele odiava a velha. Mas ajudá-la a fugir da Justiça.
Acalmou-se, apagou as lágrimas, vestiu-se com boas roupas, fez uma mala e encarnou o papel de turista. Estava fugindo pelo Paraguai. Até o cheiro da velha contaminar o quarteirão, já estaria longe.
“Não me importa como me sinta. Estou vingada. E o Júnior também”.