1 de setembro de 2016

POR TRÁS DE TODO GRANDE ESCRITOR...

Nunca tirei da cabeça que foi Pilar del Río que matou José Saramago.

Assisti o documentário sobre a vida dos dois com os olhos marejados. Um amor tão bonito como aquele, existir nos dias de hoje, parecia algo que ambos, ateus, negariam: um milagre.

Mas foi também ao ver aquela agenda gigantesca que Pilar fazia com que Saramago cumprisse, dando inúmeras entrevistas, fazendo viagens sem fim, comendo em horários os mais diversos, descansando mal, para um homem já na oitava década de vida e com uma leucemia bailando por sua medula (da qual ambos tinham conhecimento), que tive a certeza de que ele teria escrito mais, não fosse a força do pulso daquela mulher, que fazia suas determinações e ele, um homem apaixonado, seguia cegamente, praticamente sem reclamar. Resultado? O corpo frágil do Nobel não aguentou.

Antes de tudo isso, porém, não se pode negar que a fortaleza de Pilar também se traduziu num amor terno, encontrado diante da diferença geracional. Ela, uma jornalista que foi em busca de uma conversa com o escritor que traduzia na Espanha. Ele, um homem divorciado que vivia dedicado a sua arte. Juntos, formaram um dos casais mais próximos da história da literatura. Saramago disse que não teria se tornado quem se tornou não fosse por ela, e é bem provável. Hoje, defensora ferrenha de sua obra, Pilar vive para mantê-la viva, ativa e circulando em dezenas de idiomas.

Não foi só Pilar, porém, que tornou famosa a obra de um cônjuge escritor. Outra que ajudou o marido escritor a manter-se vivo e produtivo – para sorte da literatura mundial – foi Anna Snitkina, esposa de Fiódor Dostoiévski.

Aos 20 anos e já uma grande leitora de Dostoiévski, Anna era a estenógrafa dos livros do autor antes dele se tornar seu marido. Dostoiévski tinha 45 quando se conheceram. Em menos de um mês, Anna o ajudou a terminar seu livro mais recente, O jogador, que ele havia escrito para pagar uma dívida de jogo – ou ele escrevia esse livro e o entregava ao seu editor, ou perderia os direitos sobre toda a sua obra pregressa. Apaixonada, Anna fez de tudo para que ele conseguisse terminar o livro – e deu certo. Mais do que isso, Dostoiévski acabou por pedi-la em casamento.

Dostoiévski havia encontrado muito mais do que uma amante e companheira, encontrara também uma mulher dedicada a ele e ao seu trabalho de forma quase doentia.

O escritor, que era, ele mesmo, viciado em jogos, teve que fugir da Rússia com a esposa para escapar de credores. A história do casal narra que, certa vez, ela deu a ele o dinheiro que tinha em sua posse, que era também o último dinheiro de ambos, para que o marido o usasse para fazer apostas – isso num momento em que tinham uma filha pequena. É claro que ele perdeu o dinheiro. Mas, ciente do buraco onde estava se metendo, Dostoiévski fez duas promessas a Anna: a primeira era que iria parar de jogar, e a segunda, que a faria enormemente feliz. Pelas memórias de Anna, publicadas após a morte do marido, ficamos sabendo que ele cumpriu as duas.

O autor não escondia que ela era a mulher que parecera ter vindo ao mundo para que ele pudesse amar. Suas obras mais celebradas foram escritas enquanto Dostoiévski tinha Anna como sua secretária. Após a morte do autor, Anna Snitkina dedicou-se à manutenção da obra do marido e à criação de um museu de sua vida e obra. Nunca mais voltou a se casar.

Doistoévski não foi o único russo a ter a sorte de um amor que o conduzisse durante toda a sua vida e obra. Leon Tolstói também pôde compartilhar desta mesma fortuna.

Dezesseis anos mais velho que a esposa, Tolstói já era um escritor conhecido quando se casou com Sophia. Também ele um homem dado à jogatina, às bebidas e ao sexo, na véspera do casamento, o escritor deu à noiva todos os seus diários, contendo detalhes de suas aventuras sexuais com escravas. Mesmo assim, levaram o matrimônio adiante. O casamento dos Tolstói durou 48 anos e resultou em 13 filhos.

Mas ele estava decidido a deixar a vida pregressa completamente para trás. Vivendo então uma vida frugal de homem solteiro, Sophia se deparou com uma casa onde a cama não tinha colchas nem lençóis, e tudo era velho, desbotado, gasto. Ela tomou as rédeas da situação e tornou a família próspera, graças à maneira como conduzia as finanças, gerenciando seus latifúndios e o dinheiro que ganhavam com a venda dos livros do marido.

Sophia tornou-se muito mais do que uma organizadora de assuntos financeiros e dona de casa. Ela tornou-se a secretária e copista de Tolstói, tendo passado e editado todo o texto do romance Guerra e Paz por sete vezes, à luz de velas, depois que os filhos e os empregados já haviam se recolhido, utilizando-se de uma caneta-tinteiro e de uma lupa para conseguir compreender a letra do marido.

As dificuldades na relação, que vinham aumentando nos anos finais da vida do autor, que começara a desenvolver ideias de doar tudo o que tinham de bens e viver praticamente sem nada, culminaram com sua saída de casa, deixando uma Sophia sozinha aos 82 anos, junto com uma filha do casal, Alexandra.

Tolstói morreu 10 dias depois de sua saída de casa, numa estação ferroviária para onde Sophia havia sido impedida de ir. Sua morte, entretanto, não fez com que ela rejeitasse o amor que tinha pelo marido. Organizou e conseguiu ver publicadas as obras completas do marido, sem deixar, nenhum só dia, que ele fosse esquecido.

Nos Estados Unidos também há um caso bastante peculiar. Dean Koontz, que atualmente é um autor muito popular naquele país, começou sua carreira dando aulas de inglês e escrevendo quando podia. No começo, escrevia ficção científica, mas sua carreira não deslanchava. Foi quando, em 1969, sua esposa veio com uma proposta: “Saia da sala de aula. Eu sustento nossa casa por cinco anos. Se ao final desses cinco anos você não estiver conseguindo fazer mensalmente sequer o que consegue fazer hoje dando aulas, você volta a dar aulas”. O autor topou o desafio. Ao final desses cinco anos, ele já tinha um livro na lista dos mais vendidos, e daí pra frente, não parou mais. Sua esposa foi, durante muitos anos, sua agente literária internacional. Hoje, o ajuda com pesquisa para seus livros e é sua primeira leitora, sempre. Vivem para a obra do marido, que é um escritor incansável.

Um outro casal literário famoso foram Vera e Vladimir Nabokov.

Vera já gostava da poesia de Vladimir, a quem conheceu em Berlim e com quem veio a se casar em 1925. À época, o casamento de um uma mulher com ascendência judia com o filho de um aristocrata russo era incomum, mas Vladimir não dava a mínima para este fato.

Já a família do escritor, sim. Ambos eram tão unidos que aquela proximidade toda incomodava os parentes do escritor, uma vez que ele demonstrava confiar perdidamente na esposa – que era sua secretária, escrevia cartas para editores usando o nome do marido e com quem mantinha um diário.

Juntos, moraram na Alemanha, na França e Estados Unidos. Foi neste país, durante sua estadia na Universidade Cornell, que surgiram rumores de que Vera também servia como sua guarda-costas, e que mantinha uma arma em sua bolsa para proteger o marido, caso necessário. Este era o preço que tinham de pagar por estarem sempre juntos, em todos os eventos e lugares.

Como ela também datilografava seus livros, e sempre tirava fotos perto de máquinas de escrever, não demorou para que surgissem boatos de que era ela quem escrevia no lugar do marido. O problema é que Nabokov escrevia em todos os lugares possíveis. Como pra ele um lugar para se concentrar para a escrita era de extrema importância, Vera costumava levá-lo de carro para dentro de matagais, onde o deixa escrevendo, sozinho.

Nabokov dizia abertamente que jamais teria escrito um único livro se não fosse por sua esposa. Seu clássico, Lolita, foi concluído pela insistência dela, que viu, por várias vezes, o marido querer jogar os originais no lixo. Após a morte de Nabokov, já contando mais de 80 anos, Vera traduziu várias de suas obras para o russo, e trabalhou em edições ao redor do mundo da obra do esposo até sua própria morte, em 1991.

Esta crônica não poderia terminar sem um exemplo brasileiro.

Marcos Rey sempre foi um homem das letras. Desde seu pai, que era dono de uma gráfica, a paixão pelos livros já existia de forma retumbante. Foi tradutor, roteirista, cronista, escritor de novelas – não havia seara das letras em que ele não entrasse.

Boêmio por natureza, Marcos Rey encontrou na vida noturna os personagens que figuravam em seus livros. Em 1958 resolveu montar uma editora – que não teve vida longa – mas foi através dela que conheceu a esposa, Palma Donato, uma argentina que fora procurar emprego por lá.

Ao longo dos anos, Palma Bevilacqua Donato tornou-se não apenas a grande companheira de vida – foram casados durante 39 anos – como sua grande incentivadora e confidente. Quando o marido resolveu que iria viver apenas de escrever livros, foi ela que também organizou a vida do casal – que nunca teve filhos – para que as coisas dessem certo. Vendeu seu carro, apertou as pontas e com isso, se sustentaram até que a vida financeira de Marcos Rey se estabilizasse. Marcos foi um dos poucos escritores brasileiros a viver exclusivamente dos direitos autorais. Quando morreu, em 1999, a esposa passou a administrar o seu espólio, na busca para que o marido nunca morra.

A força dessas mulheres é admirável. Mostraram uma disposição para as batalhas da vida que, sem dúvida, engrandeceram seus esposos. Talvez não tivéssemos nenhum dos escritos desses grandes autores, que ajudaram a descrever e a mudar o mundo, não fosse a ardente vontade de fazer com que seus maridos conseguissem escrever. Nunca subservientes, todas à frente de seus tempos, são exemplos de grandeza humana – e que dão a clara dimensão da importância de uma força ao nosso lado para avançarmos diante das agruras da vida. Nestes casos, quis colocar as esposas em evidência, mas certamente em outros casos poderiam ser – e com certeza são – outras pessoas. Pessoas estas que fazem o outro nunca caminhar sozinho.