11 de agosto de 2016

"Florir no escuro"

No seu segundo livro de poesia, Florir no escuro (Penalux, 2016), o escritor e multi-artista Chico Lopes lança um olhar melancólico, por intermédio do seu eu-lírico, à própria vida, à natureza, à memória. O livro é dividido em quatro partes que praticamente não guardam parentesco entre si.

No primeiro bloco, “Verme Ardente”, destaca-se de cara o poema que por uma inclusão discreta nomeia o livro (“Soleira”). É o primeiro poema, a promessa da obra. Nele se encontra uma atmosfera escura, que causa medo, mais do que certa estranheza; além de imagens e vultos que se dobram sobre si mesmos numa lenta decomposição. Alguns versos dizem: “Era só recuar, florir no escuro,/ o medo a forçar a obediência/ aos rigorosos vultos solitários/ que escolhiam calar a partilhar”.

Já na segunda parte, “Horas a fio”, a dor surge lancinante e bela numa infecção moral: “Não sou bastante humano para a tua cruz;/ poupa-me do açúcar do teu pus” (“Amor”).

Nesses dois blocos o autor apresenta uma bonita lírica, seja pelos temas abordados de forma um tanto recuada, o que já é um estilo; seja pelo ritmo que se impõem em cada estrofe. O metro é livre, mas as rimas toantes e consoantes dão ritmo e velocidade a cada poema. Alguns estrofes, curiosamente, seguem um ritmo compassado, mas têm um fechamento brusco, que quebra esse ritmo impresso. Por tudo isso, ler Florir no escuro torna-se um desafio da compreensão ao fundo do eu-lírico – ao mesmo tempo que se pode gozar amplamente a forma.

Quando chegamos à terceira parte, “Asas”, saímos de uma zona nebulosa para encontrar mais luz e cores. Numa série de poemas sobre pássaros – a metáfora é a liberdade para a inadequação social, da qual eles não sofrem, mas o eu-lírico, sim –, cabe a beleza de narrar o comportamento das aves angelicais e divertidas como as maritacas (Ela é mais verde no verde/ não bastasse o que já há:/ você viu uma, viu duas,/ três, quatro, cinco, assembleia/ – um verdor de blá-blá-blá”.

Devemos, aqui, levar em conta a capa do livro. Escura, com um dos quadros de Chico, que além de pintor é artista plástico, ela remete às zonas pouco confortáveis da existência. O anjo, de olhos vendados e de costas para a cidade, pressente os pássaros noturnos. Porta uma espada e uma lâmpada de querosene. A lua cheia paira sobre ele. E quem é ele, senão o poeta?

Então, chegamos à poesia aberta, sincera, confessional da quarta parte, “Memória”. Tanto nela como no bloco anterior há poemas em prosa muito tocantes, com a técnica que tem um autor de pés fincados no experimentalismo, já maduro, de um bom leitor de Proust.

Mas, por incrível que pareça, ainda não é essa prosa poética que arrebata o leitor. O poema “Mãe” incomoda, causa tristeza e culpa. Nada mais confessional do que falar da mãe, da sua presença, da sua ausência. (“Uma mulher dorme em algum canto do meu sono./ Ela está morta, e eu nunca a compreendi.”).

Essa "recherche" de quem revira as coisas do passado, sem no entanto tirar cada uma de seu devido lugar, é, muito provavelmente, o que há de melhor em Florir no escuro. Cada poema apresenta um cuidado estético marcante, cumpre uma experiência artística relevante para o leitor, num crescendo a partir do primeiro poema até o paroxismo do prazer da leitura. Afinal, naquela quarta parte impregnada de memória e que só tem quatro poemas (“Um dia”, “Mãe”, “Retornado” e “Felicidade antiga”) está toda a alma do poeta Chico Lopes, em que o pessoal se faz universal. Mais difícil do que passar pela experiência perturbadora da leitura é fechar o livro, que pede a presença e a atenção constante do leitor; recobrando, assim, ou até reivindicando, que cada palavra, de cada verso, de cada poema, seja vivido intensamente por quem opta por fruir esse Florir no escuro.