9 de agosto de 2016

Dolores

Nasceu praticamente morta. Um parto difícil. A irmã gêmea, mais forte, acabou morrendo logo após o nascimento. Ela não. Baixo peso, respirava com dificuldade, mas sobreviveu. Ficou relegada a um canto até a recuperação da mãe, sendo cuidada por algumas almas boas que tinham piedade de um ser tão frágil. Dias depois, quando viram que não iria morrer, resolveram levá-la à mãe que a aceitou de bom grado, afinal era o que restava. Recebeu o nome de Dolores.

A infância foi difícil. Fraquinha demais, magrinha demais. Todas as doenças a procuravam. Conseguiu ter todos os ites que constavam na literatura médica.  Sarampo, catapora, rubéola, roséola, coqueluche, tifo, difteria. As doenças infantis, sem exceção de nenhuma, habitaram seu corpo que resistia bravamente. Olheiras profundas eram a única lamentável cor de destaque na pele pálida e sem viço.  Vitaminas, farinhas enriquecidas, orações, consultas a todos os especialistas tudo era usado para fazê-la vencer a morte. E Dolores vencia, rastejando entre os anos de meninice. Ela é muito forte pra aguentar tanta doença, brincava o pai.

Entre frascos ambares de remédios, injeções curativas e internações necessárias, Dolores fez-se adulta. Uma adulta de aparência tão frágil quanto a criança que fora, encantou os olhos de um rapaz que desejava livrá-la de tantos males. Casaram-se, como era o costume, tiveram filhos, como era de hábito. Gestações complicadas, partos dificílimos, pariu cinco filhos. Os filhos, três rapazes e duas meninas, diferentemente da mãe eram fortes, sadios. Cresceram ajudando o pai a cuidar das doenças da mãe, que não desistiam de atacá-la. Tudo o que Dolores pedia em suas orações era só mais um dia. Falava para os filhos que não era ambiciosa para pedir muita coisa, muitos anos, a saúde que nunca a pertencera. Pedia apenas mais um dia para conseguir vencer sua luta contra a morte, sua prenda do dia natal.

Todos os dias, durante milhares deles, o pedido era o mesmo, chegar até a próxima manhã. Assim, de pouco em pouco, Dolores foi caminhando pelos anos. Muitos deles. Dezenas deles. Enterrou o marido, pobre coitado, de uma doença quase que pior que as dela. Enterrou os pais, irmãos, irmãs. Enterrou três filhos, restando apenas um casal para ampará-la na velhice, que agora a arrastava. Amigos, médicos, enfermeiros, cuidadores, um por um, como o seu pedido por dias, Dolores ia enterrando. Sofria a cada morte. Não sofria tanto o quanto julgava necessário, pois se sentia vitoriosa. Ela permanecia lá, com todos os seus males, sobrevivendo, como no primeiro dia, enquanto os fortes caíam aos pés da morte. Algumas vezes pensava ser eterna e que todas as outras pessoas iriam e a deixariam ali na eternidade de sua existência frágil, dia após dia. Sabia que não. Sabia que um dia a morte chegaria, entraria pela porta e a tomaria em seus braços com carinho. Dolores era um desejo antigo dela.

Havia um dia seguinte que era mais especial que qualquer outro dos seus dias vencidos. Era o dia do seu centenário. Tão poucos conseguem vencer um século inteiro e justo ela, de corpo tão debilitado pelas inúmeras doenças, estava prestes a comemorar cem anos. Ansiou essa data. Seria a vitória final. Depois disso poderia morrer, partiria sem pedidos para encontrar os seus do lado de lá. Acreditava que haveria sim um lado de lá muito especial, principalmente para pessoas raras como ela. Cumpriria assim seu centenário com uma celebração simples, mas simbólica. Pedira um bolo colorido, como os do tempo de criança, com glacê de claras e bolinhas cinza, daquelas duras de morder. Na mesa deveria ter as fotos do marido e dos filhos. Balas de coco, ponche, guaraná eram imprescindíveis. Depois desse aniversário poderia ir embora tranquila. Qualquer outro dia, qualquer outro ano. Venceria um século. Venceria a morte, sua perseguidora implacável.

A noite da véspera foi insone. Não conseguia pregar os olhos, aguardando o momento de apagar as cem velinhas, outro pedido imperioso. Levantou-se no meio da madrugada para certificar-se de que tudo estava nos conformes. Não acordou a cuidadora, nem o filho que dormia no quarto ao lado. Queria mesmo ir só, verificar cada detalhe da festa. Arrastando os chinelos chegou à cozinha escura. Ela estava lá. Certamente era ela. Capuz escuro, rosto baixo. É certo que a achou meio franzina, mas isso não tinha a menor importância naquele momento. Ela viera para a batalha final. Na penumbra da cozinha ela a olhou. Assustaram-se. O tão temido encontro finalmente estava ocorrendo. Dolores a olhou com firmeza. Não, definitivamente ela não a levaria agora, na véspera de seu centenário. Maldita! Sempre a perseguindo, como uma sombra, achincalhando seu corpo com tantas enfermidades, as quais resistira bravamente por quase cem anos. Era uma velha conhecida de batalhas, por isso se permitia a olhá-la assim de frente. Hoje não. Ia dizer agora o que estava guardado em sua garganta há tempos. A figura horrenda levantou-se. Realmente era franzina. Levou o dedo indicador à boca, ordenando silêncio. Tinha o olhar grave. Embora as sombras a cobrissem, não a achou tão feia. Na mão direita empunhava uma grande faca gasta e pontuda. A faca que cortaria o fio da vida. Tinha ouvido uma história assim quando criança. Ou seria uma foice? A idade levava as lembranças embora.

- Eu sei o que você veio buscar.

Dolores falou sussurrando para não despertar os outros. O que diriam se a pegassem conversando com a morte? Ela sim, ali, materializada na sua frente, capuz no rosto, faca na mão e lhe dando ordens.

- Sabe?

Incrédula, a morte falava também de modo quase inaudível.

- E digo mais, maldita: hoje não!

Procurou controlar sua voz para não gritar e expulsá-la dali como quem espanta as moscas do prato. Viu um sorriso sarcástico brotar nas feições dela.

- Ah, dona, não me diga o que fazer! Hoje quem manda aqui sou eu!

Dolores sentiu um frio percorrer sua espinha. Não é que a danada vinha realmente lhe buscar? Poderia ter morrido em qualquer dia, em qualquer ano. Ao nascer, com os ites de criança, com o tifo os sete anos, com as doenças da infância e adolescência, com os partos (e seria até como uma mártir dando a vida por seus filhos), mas ali, agora, na véspera dos seus cem anos, não. No entanto a morte ditava os comandos. Negociaria com ela.

- Volte amanhã. Amanhã à noite e aí você pode pegar o que veio buscar.

Achou chato usar para a própria morte a palavra matar.

- Nem amanhã, nem depois, dona. Eu quero agora.

As negociações não estavam dando certo. A morte permanecia irredutível, queria levá-la. Que tivesse dó dela, ora bolas! Um século lutando contra ela. Em outras ocasiões não acharia ruim. E em meio a tantos pensamentos sentiu a morte atrás de si. Em um pulo rápido a danada posicionara-se junto a ela, com a faca apontada para seu pescoço e a outra mão impedindo seus movimentos. Estava acuada.

- Agora, dona!

Dolores tentou com todas as suas forças desvencilhar-se da armadilha na qual caíra. Em vão. Sentiu os braços da morte a apertarem um abraço mais forte. Tentou gritar. Sentiu a lâmina fria e enferrujada da faca pontuda penetrar-lhe o pescoço num golpe certeiro. O sangue quente, em jorros, correu pelo seu corpo a levando sem vida para o chão frio da cozinha. Ela vencera. Dolores ainda olhou-a durante a queda. A maldita a olhava impassível.

O baque seco do corpo de Dolores no chão acordou a casa. As luzes se acenderam. Uma voz surgiu da janela.

- O que você fez, maluco???

O moleque de capuz e a faca, agora ensanguentada, nas mãos permaneciam imóveis olhando o corpo no chão.

- Cê é burro mesmo, cara! Matou a velha! Era só pegar a grana! Vaza daí!

O moleque partiu assustado pela janela estreita, levando a faca, o sangue e a vida de Dolores nas mãos.