15 de junho de 2016

A poesia de Alexandre Guarinieri

Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia.  Seu mais recente livro é Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014 [livro ganhador do 57o Jabuti]), cuja segunda edição sairá em breve pela Penalux.

  

o átomo de carbono (i)

toda a vida contida numa exígua partícula,
– desdobrável de si própria –, equilibrada
sobre a mesma progressão desenfreada;
deuses ferveram-na numa caldeira aquecida
ante o clarão do big bang / cozendo-a por milênios,
lenta, nas tripas da mais velha estrela / e lá, aprisionada,
como o maior espetáculo da via láctea, além do limbo
centígrado dos organismos bioquímicos,
replicou-se a enzima de sua fina
(e elástica) matematicidade
// até que […]

 

sangue | suor / e celulose (i)

a carne, que cada corte desonra,
cintila nesse mal que tarde a sarar
a pressão de toda ofensiva tardia,
qualquer soco, avaria / aí cada agulha
se calcula ou se anula / balbúrdia,
barulho, algazarra que cada palavra
declara, tingindo toda ou alguma
área da página mais alva / à nudez
do papel, a rápida mancha a vio
lentá-la / da pálida celulose, violada,
o que sangra é tinta tipográfica.

 

[| a pele |]

homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu
neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre
pêlos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar
ou ressecar, contra as condições do habitat (algo
se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fibras);
seus sensores de calor vigiados de uma
torre de comando, enquanto é mantida viva, (hidratado
adequadamente cada intrincado recanto)
como a máxima peça, de uma alfaiataria das mais
complexas: seria tão errado reduzi-la ao tato costurando
ao tecido apenas um, dos cinco sentidos?

 

(( ( útero ~ incubadora ) ))

 

( hábitos aquáticos no estágio embrionário – ( ~ mar ~  matre ~ mater ~ ) a placenta atravessada a nado por alguma criatura inicial – ( ~ girino ~ feto ~ enguia ~ ) cujo único exercício preparatório é o respiro amniótico nesta antessala líquida do mundo ( a câmara salina na bolha viva da barriga ) | o que da ova retida leva o solitário ovócito confortado, do óvulo revelado eva adentro, é toda fértil a terra materna | o filho, no início, bicho tão mínimo, indistinguível de qualquer outro seixo modelado sob o rio sanguíneo ( do íntimo nilo ao assomo do amazonas ), grão humano aguardando subir tantos degraus quanto necessário para tornar-se um corpo, na manjedoura dos ovários, do zigoto ao todo, gomo por gomo ( diagrama, fractal ), mandala gráfica o amálgama dos gametas | ( da nutrição pelo umbílico o bebê é dependente, umbrívago ), ossos desenvolvem-se, órgãos, cérebro, segue-se o desenvolvimento de todos os membros ) desde o sêmen [ do pai, macho da espécie, apenas o mero remetente de seus genes ] e dentro por nove meses [ da mãe, tenro invólucro amoroso, tendo sob sua guarda algo novo ] a cápsula carnal que alargará o canal vaginal, túnel extremo do músculo, porque se haverá de abandonar (a qualquer momento) essa hospedagem ( quando nascer começa a doer ) será outro o destinatário neste parto – o pai não pare –, a porta (exaurida na expulsão) serão duas pernas abertas ) ao espetáculo dá-se o nome: “nascimento” ( no clímax, destaca-se o ticket ) ansioso o silêncio ) o primeiro choro interrompe o suspense ) “não há defeito congênito!”, celebram os obstetras, aos berros ] ESTE É O LADO DE FORA! [ o ar arranha ] é áspero o primeiro oxigênio [ a partir de agora, sob uma sequência de choques, somente interrompida pela morte, serão muitas auroras de fuligem e pólvora! ] a menos que este neonato, acometido por estranhíssima epifania pré-natal, (o caso mais raro!) escolhesse enforcar-se no cordão umbilical | mas ao recém-nascido saudável restará, desde já, [ a verdade ainda indisponível ],   revoltar-se /

((   ,   )) <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   < ou voltar!]