8 de junho de 2016

A poesia de Flávio Morgado

Flávio Morgado é poeta. Nasceu em 1989 no Rio de Janeiro. É autor de "um caderno de capa verde" (7Letras, 2012). Em junho de 2016 lançara "uma nesga de sol a mais".

  

pré-palavra

para Rafael Haddock-Lobo

 

minha vontade

é branca antes da palavra escrita

e frente ao branco

(experiência de espanto)

 

devo resolver

a vontade da palavra vontade

e torná-la visível

corpórea

 

porém indizível é a vontade -

absolutamente outra da palavra -

que

estanca

o poema

 

é verti

gem e

dever de escrever

 

(e o poema é deixar tremer)

 

é deixá-lo

espantado

para quando a palavra for dita

dizer tudo que o branco

diria:

que é temor e

tremor

 

já que mesmo quando

no poema a palavra publico

apenas o

abismo

multiplico

 

 

*

 

arte abstrata

ao lhe ver pintar

me perco

 

atento fico

ao que bo

rra

 

a paleta

sobre a mesa

mistura

as cores

do ainda não feito

 

e me é um quadro:

o seu, o da feitura

da fatura da tinta, que erra

verde.

 

se muito,

delega o excesso

sobre a tela

imprevista

 

cintila o delírio

da cor calada

do resto, do rastro

do quadro ao contrário

 

- imagine o chão de Pollock...

 

em que tudo sobra

e não está     só

(des)vimos a forma

redimir o olho:

 

a paleta é o quadro.

 

- e a voz da cor

se enuncia no que ainda

é sonho.

 

*

 

os seios de Halla Bhairi

(para Gaza)

 

não crescerão

os seios de Halla Bhairi.

 

não os veremos

desabrochar

- os próprios seios visam pétalas

que não despontam

 

e os de Halla Bhairi

nunca despontarão

 

(a jovem menina morta)

 

não terão olhos

os seios de Halla Bhairi

que mirem as mãos cuidadosas

de outro

jovem palestino

ou judeu

- porque a paz é surpreendente.

 

não sentirá o peso de seus

seios, Halla Bhairi

não os adornará com óleos,

não os deixará seminus

os seios de Halla Bhairi

a saber o que se ganha (e o que se perde)

por ter seios, Halla Bhairi.

 

não amamentarão

os seios de Halla Bhairi

um outro futuro (que talvez fosse livre)

 

porque interferimos a rota de seus

seios, Halla Bhairi

 

e ferir o futuro

é não parar de ferir o futuro

- matamos o filho de Halla Bhairi.

 

crescerá em nós

os seios de Halla Bhairi

 

o silencioso seio, o desmedido seio

ao peso de nossa Gaza:

 

ao homem imposto pela voz

sob a surdez

à mão ao gatilho que desfez

o aperto

ao lucro ao revés

do preço

 

do afeto

estarão nus

os seios de Halla Bhairi

 

o silencioso seio, o reconhecível seio

ao peso de nossa casa

 

e estarão a sós

(em nós)

à revelia do que esquecemos

e incompletos e interrompidos

 

fazemos à guerra

 

- denegamos o amadurecimento.