28 de maio de 2016

O Outro Escritor

Eu havia acabado de me formar da faculdade e voltara a morar com meus pais por um tempo. Um dia após o jantar declarei que queria ser escritor. Na tarde seguinte, meu pai veio conversar comigo. Estávamos na sala.

– Decidiu ser escritor então?

– É, queria dar uma chance. Ver se dá certo.

– É uma carreira muito bonita. Não vai seguir na biologia então?

– Por enquanto não, mas quem sabe depois?

– É, pelo menos já tem o diploma aí, que aí já dá pra conseguir um emprego.

Eu ainda não trabalhava, e às vezes me sentia como um peso para meus pais.

– É.

– Você sabe que eu já quis ser escritor, né? Era meu sonho.

Aquilo me pegou de surpresa. Nunca imaginara meu pai escrevendo. Imaginei se ele tinha algum texto guardado nas gavetas.

– É, pois é, eu gostava de escrever na sua idade, mais ou menos. Comecei na faculdade, pra contar minhas histórias.

Meu pai sempre fora um homem de muitas histórias. Costumava nos contar (pois éramos eu e meu irmão) de suas aventuras e viagens desde que éramos pequenos. Já tinha ouvido todas milhares de vezes, mas gostava que ele tinha jeito para contar e se alegrava bastante toda vez que as lembrava.

– Mas aí depois eu vi que era muito mais gostoso viver a vida do que ficar escrevendo. Por isso eu decidi experimentar tudo e só quando for velho e não tiver mais o que viver eu sento e escrevo.

– É, viver para contar que nem o Gabriel García Márquez. Né?

– É... e já pensa em publicar um livro?

– Tô pensando em juntar uns contos que eu tenho aí e publicar. Mas ainda tenho que rever, dar uma melhorada.

– Que bom, escrever é muito gostoso. Quando você gosta do que faz, sabe?

– Sim, eu gosto muito.

– Eu tinha um amigo, o Gomes, que escrevia também. A gente se conheceu na faculdade e saía direto. Tivemos altas noitadas comendo as menininhas.

A maior parte das histórias que meu pai contava eram de suas jovens noitadas e das mulheres com quem deitara. Aprendi a apenas sorrir e ouvir a história, deixando de prestar atenção nos detalhes mais reveladores.

– O Gomes era o engraçadão da turma, tinha umas piadas muito boas. Mermão, aquele cara era muito engraçado! Conseguia fazer todo mundo na mesa rir com qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Se tu desse pra ele um saleiro ele ia te fazer rir com aquilo de algum jeito. E ele conseguia passar essas piadas pro papel; os textos deles eram sempre engraçados. Nós dois escrevíamos, mas mais pro pessoal mesmo, ficava só entre a turma do curso. A gente só publicava no jornal do grêmio, e aí ele teve a ideia de publicar um livro comigo. Foi bem divertido, a gente juntou uns textos de cada um e mandou pra uma gráfica pra imprimir, do nosso bolso mesmo.

– E aí, como foi?

– Aí o livro saiu, mas não deu muito dinheiro. Não vai esperando muito não, viu?

– É, eu sei. Tô me preparando psicologicamente pra isso.

Na realidade, eu sonhava que meus textos seriam um sucesso. Todos iriam ler e adorar; seriam considerados clássicos ainda em vida. Ora, era um sonho, porque não ter grandes esperanças?

– Os textos do Gomes eram muito bons. Eu li aquilo e vi que o cara tinha talento mesmo, e senti aquela inveja de escritor. Isso é uma coisa que você vai ter bastante, se prepara. Mas não vai julgar seus textos pelo dos outros. Porque cada um escreve do seu jeito e pensa diferente. O pessoal gostou bastante das histórias dele, ficou todo mundo elogiando. Mas o Gomes merecia.

– E os seus? Falaram o quê?

– Dos meus gostaram, falaram bem também, mas eu tinha muito que melhorar ainda. Quando eu vi os contos na página do livro, deu pra ler como se fosse outra pessoa que tivesse escrito e eu vi que tinha muita coisa que ainda mudaria. Minhas histórias eram muito minhas, muito pessoais. Mudei os nomes pra não ofender ninguém, mas o que eu precisava mesmo era trabalhar mais neles pra ficar bom mesmo. Mas o Gomes já era escritor feito, desses de vocação mesmo. Ele dizia que era só por a caneta no papel que saía tudo de uma vez, nem precisava editar. E fez sucesso, ele. Escreveu crônica pro estadão, publicou uns três livros depois.

– Não conheço ele de nome... tem esses livros aqui em casa?

– Não... eram muito antigos aqueles livros. Eu e sua mãe acabamos perdendo na mudança. Se procurar nos sebos aqui da região você encontra. Ele publicava como Gomes Aguiar, mas ele dava as cópias pra gente autografadas como Gomes Santos Lima, que era o nome de verdade dele. Ele até tentou me ajudar a publicar meus outros contos, deu umas dicas, mas era difícil, o pessoal não gostava tanto assim. Quando eu conheci sua mãe que eu descobri que era mais gostoso viver com ela do que escrever sobre ela e deixei pra escrever tudo depois. Minhas histórias, meu romance. Porque minha vida daria um romance, você sabe. Já te contei vários episódios, mas só mais tarde eu escrevo tudo, porque ainda tem muitos outros pra vir.

Gostava dessa visão otimista de meu pai, apesar de sentir em seu tom de voz algo de uma frustração. Ele sorria ao me contar, porém.

– Por isso, filho, escreve o que você gosta de escrever, e não tem pressa. Porque você vai precisar de tempo pra ler e reler o que escrever e fazer bem feito. Mas não vou ficar sustentando vagabundo não! Então vê se arranja um emprego logo pra se sustentar, pelo menos por agora.

– Obrigado, pai.

Ele sorriu e pôs a mão no meu ombro. Ia se levantar, mas precisei fazer uma pergunta.

– E o Gomes? Por onde anda, já que fez tanto sucesso?

– O Gomes já se foi faz muitos anos. Foi um dos que sumiu na ditadura. Pô, foi foda mermão. Pegaram ele na casa dele um dia, no meio da tarde. Ele já vinha tendo uns textos censurados, e desapareceram com ele que nem fizeram com muitos outros.

O clima pesou na sala, e meu pai foi para o quarto olhar antigas fotos. Dez anos depois deste dia, ele transformou sua história com Gomes em um conto que chamou de O Outro Escritor. Não alterou os nomes. Me mandou por email pedindo para ajudá-lo na revisão. Lendo a história, descobri que a relação dos dois fora muito mais conturbada do que havia me contado. Brigaram diversas vezes, e anos antes do desaparecimento de Gomes, haviam deixado de se falar.

Enviei para meu editor, que gostou. Uma semana mais tarde meu pai morreu de um ataque cardíaco fulminante. Não chegou a ver sua história sendo publicada. Nem o sucesso que fez.

 

Ivan Nery Cardoso, 24, é biólogo formado pela Unicamp e escritor por paixão. Escreve no blog Contos do Cardoso (www.contosdocardoso.wordpress.com).