20 de maio de 2016

O bom e velho Dave Wallace

Eu costumava pensar em deus como um mendigo viciado que masturba velhos tarados no banheiro do terminal do boqueirão em troca de cincão pra comprar pedra, mas com Graça Infinita aprendi que deus atende pelo substantivo feminino autoconsciência e David Foster Wallace foi enviado ao planeta terra pra espalhar sua palavra e daí se enforcar em 2008.

Eu costumava pensar que toda a tristeza do mundo estava condensada num poema de doze versos do Robert Walser, mas com Dave Wallace e seu Graça Infinita aprendi que toda a tristeza do mundo tem um quilo e meio, 1136 páginas e 388 notas de rodapé.

Aos 20, resolvi que precisava conhecer o AA. Tenho um tio alcoólatra que me foi de grande ajuda. Frequentei, se bem me lembro, seis reuniões. Foi bom. Não me tornei um iniciado no grupo. Não é que eu já estivesse no fundo do poço ou algo assim, mas senti que precisava dar uma pausa nos meus exageros etílico-cocaínicos e repensar algumas coisas. Foi como ir ao psicólogo, mas sem custos – e, gosto de acreditar, com pessoas reais. Eu ia de carona com esse tio. No GI, DFW escreve sobre a Casa Ennet de Enfield, uma casa de recuperação para viciados em álcool e drogas baseada no programa de 12 passos do Alcoólicos Anônimos. Nessa casa, conhecemos Don Gately, um cara em recuperação (obviamente) devido ao seu vício em Demerol, álcool e violência e que também era ladrão, mas se comportou direitinho e virou funcionário da casa; tem a velada Madame Psicose, membro da OFIDE (Organização dos Feios e Inconcebivelmente Deformados, daí o motivo de ela usar o véu), apresentadora de um programa de rádio macabro, atriz nos filmes do falecido Dr. James Incandenza e viciada em cocaína freebase que quase foi pro outro mundo, aí com uma mãozinha de um e outro acabou se internando para talvez encontrar o Deus do AA, seja lá como você O conceba; o sádico Randy Lenz, um cocainômano foragido tanto da polícia quanto dos bandidos que precisa estar a todo momento de sua tortuosa sobriedade informado sobre as horas exatas; e vários outros interessantes depravados de todos os tipos e classes sociais, mas esses três formam o fio condutor da narrativa do romance. Isso, porém, não é o mais importante. Na Casa, aprendemos muito sobre convivência, dependência, tolerância e transcendência. A partir da página 207, o narrador onisciente começa a citar coisas que você irá aprender numa casa de recuperação, tais como “que todas as pessoas viciadas em Substâncias são viciadas em pensar, o que significa que elas têm uma relação compulsiva e patológica com o seu pensamento” e “que 99% da atividade pensante da cabeça consiste dela própria tentando se fazer cagar de medo”. Não há nada para acrescentar. O que conheço são contínuas ressacas desesperadoras após madrugadas preenchidas com álcool destilado, cocaína e muito papo furado, e sei que não são nada legais a longo prazo. Com o Graça Infinita, aprendi que autoconsciência pode ser destrutiva. É preciso aprender a usá-la.

Não aprendi nada sobre o amor homem-mulher. Todas as relações descritas no livro são doentias e infinitamente tristes. Meio que só comprovei meu ponto: quanto ao amor, não há salvação. É preciso desenvolver a autoconsciência e enxergar o mundo e as relações como elas realmente são e, na medida do possível, tentar absorver isso e viver em paz com o grande vazio que preenche tudo. Seria possível falar sobre budismo aqui, mas seria só mais conversa fiada de um ocidental hipócrita. Talvez a melhor forma de salvação seja a literatura.

A trama do livro é tão minuciosamente arquitetada que não dá nem para imaginar o brilhantismo do cara que a desenvolveu, mas todas as pequenas historietas contadas no decorrer dela oferecem um exercício de autoconhecimento para a vida toda, muito além do plano imaginário passageiro que criamos ao ler um romance. Com o Graça Infinita, confirmei que a literatura é muito mais que masturbação mental e exibicionismo. Um bom livro pode mudar o mundo – ao menos, o seu mundo.

Aos 12, torne-me órfão de deus. Perdi a muleta etérea que sustenta a esperança da maioria. Acho que esse é o grande trauma da minha infância. A Academia de Tênis Enfield (ATE) é uma escola em regime de internato que treina mental e fisicamente jovens que, em sua maioria, sonham em ingressar no circuito profissional de tênis. É aí que conhecemos Hal Incandenza, Michael Pemulis e companhia, os infantes que diariamente enfrentam os treinos pesados dos juvenis que almejam o jogo de alto nível e conhecemos todas suas turbulências mentais e, meio que por consequência (das turbulências mentais), seus problemas com drogas. Sentado em posição de lótus, flutuando a alguns centímetros da superfície de um armário de toalhas na sala de musculação da ATE, fica o Lyle. Lyle é um guru fitness que literalmente se alimenta do suor dos alunos e oferece profundos conselhos espirituais em troca. Lyle era amigo pessoal do diretor-fundador da ATE e cineasta experimental James Incandenza, até que o James engenhosamente resolveu enfiar a cabeça num forno micro-ondas para se matar. Com o guru conselheiro, aprendi que “a verdade liberta, mas só depois de acabar com você”. A leitura desse romance me permitiu reviver aquele sentimento de plenitude de quando eu era inocente, antes do plano social ou qualquer conclusão nefasta sobre a existência me tirar isso. Com o Graça Infinita, é possível respirar aliviado depois de passar tempo demais submerso.

Quando somos baqueados por uma epifania, parece que uma parte de nós se vai para sempre. A ideia superada jamais tem a mesma força. Quem pensa se torna órfão de esperanças a cada dia. O Schtitt, um dos técnicos da ATE, disse pro Mario Incandenza (irmão extremamente defeituoso do Hal, mas que funciona meio como o coração da narrativa, fisicamente abominável mas de bom coração, incapaz de entender ironias e as vilezas da sociedade): “Toda vida é igual, como cidadãos do Estado Humano: os limites vivificantes ficam dentro, à espera de serem mortos e pranteados, repetidamente”. Com o Graça Infinita aprendi, enfim, que a única forma de seguir em frente é a partir da renovação interior. É preciso fazer da autoconsciência uma aliada que te ajudará a sobreviver da melhor forma possível, mesmo apesar dos apesares.

 

Nota de rodapé:

David Foster Wallace foi um escritor norte-americano que se enforcou em 2008. Infinite Jest, seu romance de mais de mil páginas, foi lançado nos EUA dia 1 de fevereiro de 1996. Eu nasci dia 1 de fevereiro de 1995. Sei que isso não quer dizer absolutamente nada, mas achei curioso. Eu estava comemorando meu aniversário de 1 aninho quando a maior obra de arte de todos os tempos foi lançada. (É só minha opinião até aqui. Tenho 21 anos. Já li mais de 300 livros. Abandonei uma bolsa de estudos integral e já trabalhei como paliteiro, que é basicamente colocar palitos em picolés para aqueles carros que passam na sua rua num fim de semana ominosamente ensolarado com aquela gravação-padrão de absurdo baixo nível anunciando os pacotes de picolé por 10 reais. Também já fui garçom e barista. O álcool é muito presente na minha vida e eu costumava dizer que a cocaína vale mais que qualquer trepada.) Não acredito em deus nem em astrologia. Aqui na terra dos índios, o calhamaço foi lançado pela Companhia das Letras como Graça Infinita, tradução de Caetano Galindo. O Graça no nome é perfeitamente plausível: o romance é, com certeza, uma experiência religiosa. Imagino que quando evangélicos estão falando em línguas nas Igrejas de esquina de subúrbios eles estejam tão eufóricos e possessos quanto eu estive no decorrer da leitura. A primeira vez que comecei a leitura acabei parando na página 500; na segunda tentativa, terminei. O romance não é linear e são pequenas frases e detalhes que irão montar a trama no final. O negócio é que os Estados Unidos se juntou com o Canadá para formar a Organização das Nações da América do Norte (ONAN) e parte do território acabou se tornando um depósito de lixo tóxico, viveiro de vários animais mutantes. Nesse cenário distópico, a história gira em torno de uma fita que oferece um entretenimento tão viciante que quem assiste não consegue mais parar. Essa fita foi criada por James Incandenza, um cineasta experimental, pai do Hal, do Mario e do Orin, casado com Avril e diretor-fundador da Academia de Tênis Enfield, onde grande parte da história se passa narrando o cotidiano caótico dos infantes que pretendem jogar tênis profissionalmente. Existem organizações anti-ONAN do Canadá que querem se apossar dessa fita e tomar o controle da coisa toda, aí é que entram os Cadeirantes Assassinos, toda sorte de viciados que acabam entrando de gaiato na história, um espectro bonzinho e tudo vira uma grande merda generalizada. Todo o brilhantismo da construção narrativa, porém, não é o mais importante. O que mais pesa é que Graça Infinita nos apresenta David Foster Wallace como uma experiência religiosa, na qual o substantivo feminino autoconsciência faz o papel de deus e nós, leitores, somos pecadores sujeitos à conversão. O título deste escrito vem dum conto do DFW chamado O bom e velho neon, que é sobre suicídio. (Por vários anos, flertei seriamente com o suicídio. No autobiográfico A vida de um idiota, da coletânea Rashomon e outros contos, o escritor japonês Akutagawa conta que se enforcava com um cinto e cronometrava para ver o quanto aguentava. Dizem que quando a pessoa se enforca, morre com uma ereção. Centenas de pessoas morrem anualmente pela auto-asfixia erótica: o cara se enforca com um cinto enquanto se masturba, aí acaba morrendo por ter perdido o timing da coisa. O mesmo acontece com quem tem overdose de heroína: busca pelo prazer, fim inesperado. Ou não. Talvez o fim nunca seja assim tão inesperado. Todos carregamos os velhos impulsos de morte. Não acredito em Jesus, mas acho razoável aceitar que Freud até que acertou algumas coisas. Freud usava cocaína. Uma vez tentei me enforcar com o cinto, mas não aconteceu nada demais. Nem fiquei com o pau duro. Acho que não tive a fibra moral necessária. O tempo está passando e estou ficando cada vez mais gordo e burro. Tenho certeza que viverei mais de 50 anos.)