15 de março de 2016

Afinal, gosto se discute?

Para Immanuel Kant, sim. Tanto é que ele dedicou uma obra inteira para as questões do gosto, a “Crítica da Faculdade de Julgar”, publicada em 1790. Para o filósofo alemão, é possível discutir o gosto porque uma discussão é diferente de uma disputa. Filosoficamente, uma disputa é uma batalha de argumentos que exigem demonstrações, a fim de que uma ideia prevaleça. Uma discussão é um processo de lapidação das opiniões, cuja finalidade é chegar a um acordo entre as partes. Assim, não se disputa sobre o belo, porém pode-se discuti-lo. Kant afirma ainda que a experiência estética é compartilhável e que a beleza é uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal.

Partindo das proposições kantianas, ou seja, se o sentimento de beleza é universal e passível de partilha, por que, atualmente, vivemos uma carência de esteticidade? Hoje em dia, conforme ilustra Marilena Chauí, se perguntássemos a uma pessoa comum o que é um artista, provavelmente ela elencaria nomes de atores de televisão ou cantores populares. Escritores, pintores e escultores com quase toda certeza não seriam citados. Para este indivíduo, diferentemente da concepção Romântica, o artista não é o gênio criador, inspirado divinamente; é alguém que realiza performances. Por que esta percepção? Na contemporaneidade, a sociedade do espetáculo está intrinsecamente ligada à Indústria Cultural. Com a necessidade de fazer girar o capital, a indústria da cultura, de maneiras diversas, distorce o conceito de beleza porque sua finalidade é atingir um número grande de pessoas. "Onde as massas têm o poder de decidir, a autenticidade se torna supérflua, nociva e prejudicial", sentenciou Nietzsche. Sobre este ponto, a literatura é ilustrativa: por que livros, digamos, “palatáveis” (autoajuda, por exemplo) vendem muito mais do que livros complexos e bem escritos? Uma das respostas possíveis: a literatura genuína faz o leitor tropeçar. E não é todo mundo que está preparado para cair. Os “best sellers” são “best sellers” porque dizem o que o leitor espera. O menos preparado chama isso de “identificação” com a obra. “Puxa vida, este autor diz exatamente o que eu penso.” Não consegue perceber que o prazer da leitura está justamente em “fechar o círculo”. Este tipo de leitor jamais compreenderia Jean Paul Sartre, quando este afirmou que escrever é distanciar-se da linguagem instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como símbolos estabelecidos. Seguindo o raciocínio sartreano, é lícito distinguir a linguagem: a cotidiana como “instituída” e a do escritor como “instituinte” (criadora, inventora de significações).

Não é exagero afirmar que o homem médio contemporâneo perdeu a capacidade contemplativa; mais que isso, perdeu a capacidade de distinção estética, a ponto de colocar no mesmo balaio Ivete Sangalo e Chico Buarque. As músicas (e as artes em geral) produzidas para a massa são estruturalmente muito parecidas. Isso é facilmente explicável: a Indústria Cultural desenvolve recursos técnicos para multiplicar aquilo que é considerado o traço mais marcante da obra de arte: ser única (é o que Walter Benjamim define como “aura”). Diz ele em seu clássico livro “A obra de arte na era da reprodutibilidade”: “Fazerem as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”. O anseio da modernidade em  quebrar a transcendência dos objetos artísticos que provinha de sua unicidade fez esmaecer a aura.

Novamente trago Nietzsche: "Quanto mais superior é uma coisa em seu gênero, tanto mais raramente ela é bem sucedida". Sob este viés, cai por terra qualquer discurso de “democratização da arte”. Mas, em contrapartida, tomando as palavras de Kant que atribuiu o status de partilhável à beleza, não seria válido dizer que a arte pode ser para todos, ainda mais se levarmos em conta o poder de disseminação da internet? Não é bem assim. Para penetrar nesse reino, o homem precisa de cultivo. Aquela pessoa cujo espírito é educado pelas artes é capaz de formular o juízo de gosto adequado; é capaz de compreender que a arte está muito além da utilidade e do prazer. Sim, é preciso que o indivíduo tenha instrumentos de julgamento; é preciso dar a ele possibilidade de escolha. Em termos simples: para que alguém afirme categoricamente que “pagode” é o seu o gênero musical preferido, faz-se necessário o conhecimento de outros tipos de música, como a erudita. Afinal, a comparação é o princípio mais elementar de conhecimento, como nos mostra Platão em sua célebre alegoria da caverna: se se conhece somente as sombras, acredita-se que elas sejam toda a realidade existente.

Talvez nosso erro esteja em querer julgar com as categorias da arte algo que, de antemão, não se propõe a ser arte, somente entretenimento. Michel Teló não quer produzir um sentimento de arrebatamento em nosso ser (a mais alta função da arte, segundo Kant).  Com a Indústria da Cultura, o entretenimento invadiu o terreno da arte e a distanciou muito do cidadão comum. Isso fez com que o “relativismo estético” tomasse proporções assustadoras em nossa cultura. Todavia, trilhar o caminho oposto, ou seja, estancar os limites da arte pode ser extremamente perigoso. As consequências podem variar desde o engessamento da expressão (uma espécie de totalitarismo estético) até os mais brutais massacres como o protagonizado por Adolf Hitler. Afirmava ele: "Muito tempo atrás o homem era lindo, mas a miscigenação e a degeneração poluíram a Terra." Com a fixação de "embelezar o mundo", Hitler arquitetou seu plano de "higienização da humanidade", que culminou no holocausto.

Atenuados os dois extremos (dogmatismo e relativismo), em quais veredas, então, podemos vislumbrar a arte? Obviamente, as respostas são inúmeras. Talvez a definição de artista de Merleau-Ponty nos ajude. Dizia ele que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber. Ou a de Fernando Pessoa, que se faz ouvir pela boca de Alberto Caeiro: “o artista procura o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras”. A arte pode e deve ser a manifestação da essência da realidade que está amortecida em nossa existência diária. Contudo, isso não significa atribuir à arte um papel moralizante.  A arte não deve melhorar ninguém, não deve sequer ser agradável. Theodor Adorno toca nesse ponto ao escrever em sua “Teoria Estética”: “À aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese...” A arte deve, sim, mostrar a condição humana perante a vida; mostrar o humano em todas as suas possibilidades, inclusive na esfera mais trágica e horrorosa. Parafraseio novamente Nietzsche: “Só a arte pode transformar a ideia de repugnância sobre os aspectos horríveis e absurdos da existência em representações com as quais se torna possível viver.” Para Nietzsche, a arte é um “estado de vigor animal”, a mais visceral afirmação da vida. Sim, amigos! O que ele nos propõe é uma mudança de perspectiva sobre a própria vida: uma ontologia estética. A vida como arte, movimento e pulsão; o homem, concomitantemente, como artista e obra de arte. E assim toma corpo o seu brado: “a vida só se justifica como fenômeno estético”.

 

Texto publicado originalmente na revista 'Filosofia: conhecimento prático'