14 de março de 2016

Os pescadores de Obioma

Os escritores têm de ter em si que a literatura pode ser e que é salvação. Mas isso só é possível quando uma escrita nos toma, envolve o leitor de maneira que a escrita, no âmbito formal, não seja sua única preocupação. Mais do que tocar todas as notas perfeitamente, o sentimento que está envolvido em uma canção tem que nos fazer sentir. E literatura sem sentimento não existe.

Não podemos deixar que autores que nos façam sentir mais humanos e mais preocupados em nos conhecer como seres sejam deixados de lado. Um deles é Chigozie Obioma, autor nigeriano, que acaba de ter seu primeiro romance traduzido para o português, intitulado Os pescadores (268 p., Biblioteca Azul), e foi um dos finalistas do Man Booker Prize, em 2015.

A literatura de Obioma seduz. A história dos pescadores se passa na cidade Akure, que é também cidade natal do autor, e que é pano de fundo e palco central do que ocorre com a família de Benjamin, Ikenna, Boja e Obembe durante aproximadamente uma década. A história, dividida em capítulos que possuem, muitas vezes, nomes de animais, como águia, garças, galos, etc., é narrada por Benjamin, um dos filhos mais novos do sr. e sra. Agwu, e parece querer mostrar ao que o ser humano pode ser impulsionado e do que somos capazes, independente de nossa idade, desde que estejamos no centro de algo altamente sentimental e complexo.

 

O pai era uma águia:
O poderoso pássaro que fazia seu ninho bem acima de seus pares, sempre pairando e observando suas jovens águias, como um rei guardando o trono.

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Ikena era um pardal:
Com asas, capaz de sair voando num piscar de olhos.

 

Vingança e amor são peças fundamentais para explicar o que acontece dentro da pequena casa comandada por um funcionário do Banco Central da Nigéria, que possui uma presença forte e respeitável frente aos filhos, exceto quando está em viagem e o cuidado da casa fica sob o comando da senhora Agwu. Criar seis crianças não é uma tarefa fácil, principalmente sem a presença do pai presente, e, muito menos, quando surge um louco em suas vidas que desgraça não apenas um dos que constitui essa família, mas a todo um vilarejo com suas palavras proféticas. Abulu, o nome do louco, é talvez o catalisador para que toda a história aconteça, construindo um sentimento no leitor que vai se materializando de uma maneira que espera. É algo plantado pela escrita de Obioma, como a isca lançada ao peixe, ficamos vislumbrados pelas palavras, com a possibilidade de nos regozijarmos com aquilo que está aos nossos olhos, ao mesmo tempo em que desconhecemos o que iremos passar, o que iremos sentir, a possibilidade da morte se fará presente indiscutivelmente.

 

 

A narrativa

Assim, os quatro irmãos, de seis, são muito próximos e sempre fazem tudo juntos, desde jogar bola até a ir pescar em um lugar em que seus pais não aprovariam por ser perigoso. Como são unidos, dissimulam suas saídas até que uma conhecida de sua mãe os vê e delata-os no mesmo dia em que a mãe descobre que Abulu, o louco que vive há tempos no vilarejo, profetizou sobre Ikenna, e, consequentemente, Boja, os dois irmãos mais velhos, respectivamente.

Daí em diante, a família Agwu não terá mais paz. Ikenna, que servia de modelo para todos, que liderava o grupo dos irmãos, mostrando sua sapiência e generosidade, além de ver nos irmãos os seus melhores amigos, mudará totalmente sua personalidade, evidenciando a força que as palavras proféticas de Abulu podem trazer a qualquer um, principalmente sobre uma criança.

No momento da profetização, Obembe é quem consegue ouvir o que o louco diz enquanto os quatro irmãos estavam parados observando o que Abulu falava, ao voltarem certo dia de uma pescaria.

Sendo assim, Ikenna é alvo do louco e descobre que sua hora vai chegar através de um rio de sangue, morto por um pescador. Daí até o fim do livro, tudo gira em torno do que ocorre com Ikenna, seus irmãos, sua mãe e seu pai.

 

Ikera, você vai estar preso como um pássaro no dia em que morrer! [...] Ikera, você vai estar mudo. [...] Ikera, você vai estar aleijado. [...] Sua língua vai saltar da sua boca como uma fera faminta, e nunca mais vai ser recolhida. [...] Ikera, você vai levantar as mãos em buscar de ar, mas não vai conseguir. [...] Ikera, você vai nadar num rio vermelho e nunca mais vai sair dele. Ikera, você vai morrer como um galo.

 

Um dos pontos do livro é o de que a história parece querer mostrar como as crianças podem agir quando têm seus sentimentos feridos ou magoados, mas, mais do que isso, como pontuou o próprio autor, o livro Os pescadores busca ser o retrato de um país que ainda precisa e está sendo descoberto pelo Ocidente. As relações evidenciadas na história, como a dos irmãos Agwu e o político M.K.O, tentam trazer aspectos de uma sociedade ainda totalmente desconhecida, por exemplo, por nós, povo brasileiro.

Na figura do louco, Abulu, o autor diz ter se inspirado na invasão britânica que ocorreu em seu país, tentando mostrar que influenciar as pessoas a mudarem podem causar estragos tremendos. Assim, as palavras proféticas de Abulu, na verdade, nada mais são apenas estímulos para aquilo o que cada um de nós aceita acreditar.

Aqueles que ouvem suas palavras profetizadoras têm a possibilidade de não acreditar no que ele diz ou de recebê-las como uma verdade inquebrantável, Abulu não tem o poder de um Óraculo, apesar de agir como um, são as pessoas que regem seu destino a partir do que lhes é dito. Talvez com isso o autor quis mostrar as escolhas que o seu povo fez, quando infelizmente foi colonizado pelo estrangeiro branco.

Desta maneira, após o encontro com Abulu, os pescadores Agwu, que não sabem pescar, começam a ter seus laços rompidos entre si. Primeiramente, Ikenna e Boja começam a se desentender, as brigas, que antes não existiam entre eles, são agora constantes e aumentam com o decorrer do tempo. Obembe e Benjamin, que antes andavam juntos com os irmãos, agora são afastados por Ikenna, pois ele teme agora pela sua própria vida, uma vez que Abulu afirmou que morreria pelas mãos de um pescador. Para Ikena, ele morreria pela mão de um dos irmãos.

Esse é o mote para a história de Chigozie Obioma. É Benjamin que narra toda a história de sua família até chegarmos ao momento em que ele vai preso. O que ele e Obembe fazem com Abulu, que agora está a boiar no rio que antes servia para a pesca dos irmãos Agwu, é algo que pode ser visto como aterrorizante, ao mesmo tempo em que devemos compreender o que se passava em suas mentes, tendo o coração preenchido com o ódio, que é como uma sanguessuga. A família, depois de um martírio sofrido durante anos, frente à desestruturação sentimental e mental que Abulu os propôs, agora, talvez, possa encontrar um novo caminho, o caminho de voltar ao rio para uma nova pesca, o de enfrentar a vida agora com a maioridade, buscando nos laços frágeis da mãe, de seu pai e de seus irmãos aquilo que fora perdido pelas palavras de um louco que invadiram a mente de uma criança.

– Nós éramos pescadores. Eu e meus irmãos nos tornamos...