19 de fevereiro de 2016

Quando eu li Campos Carvalho

 

Em meados dos anos 1990, a partir do trabalho de entusiastas como Carlos Felipe Moisés e Mário Prata, a obra de Campos de Carvalho foi redescoberta e reeditada, com alguma repercussão. Meu pai, sabendo do meu interesse por surrealismo, percebeu que eu me interessaria pelos livros dele, e me deu um exemplar de sua obra reunida (suprimida de "Tribo", o seu livro de estreia, posteriormente renegado), com uma dedicatória: "para meu filho não se esquecer que só o humor constrói". Peguei aquele volume como um tesouro, e logo na primeira linha do primeiro livro, "A lua vem da Ásia", já estava arrebatado:

"Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absorvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris".

Campos de Carvalho se tornou um dos meus escritores de predileção. Devorei sua obra, li, reli, fui atrás de toda e qualquer informação que poderia conseguir sobre ele, naqueles tempos onde a Internet era coisa que só os amigos ricos tinham acesso cotidiano e toda pesquisa teria que ser feita in loco, em sebos e bibliotecas.

Ele se encaixava perfeitamente na linhagem maldita que tanto me fascinava. E sabia disso: "Meus irmãos são Nietzsche, Stendhal, Lautréamont, César Borgia e Gilles de Rais (o Marquês de Sade era meu tipo por afinidade). São vários meus primos: Léataud, Casanova, Byron, Fernando Pessoa, Montaigne, Andreiev, Aloysius Bertrand. Sou muito mais nobre que o rei da Inglaterra, ou o Xá da Pérsia. A nobreza deles é tão ridícula quanto a divindade do imperador do Japão, filho do Sol e possivelmente pai da Lua. Nobre sou eu, é Charles Morgan, foram Rilke, Wilde, Raul de Leoni, Eduardo Guimaraens, Gabrielle D'Annunzio", escreveu em 1954.

Alguns meses depois, comecei a namorar a Marina, e ela me apresentou o Antonio Prata.

Dizem que se forma um tipo de confraria em torno dos apreciadores do Campos de Carvalho, e logo que nossa conversa foi para essa direção nos tornamos imediatamente amigos de vida inteira. Na terceira cerveja, comecei a propor de tentarmos fazer uma entrevista com ele. Certamente, o Mário, pai do Antonio e primo do Campos de Carvalho, teria o seu contato. Antonio ficou reticente, mas acabou gostando da ideia.

Conseguimos a entrevista, e no dia marcado estávamos lá, num antigo apartamento, na minha memória localizado em Higienópolis ou Consolação. O Campos de Carvalho que nos atendeu era tudo o que não podíamos esperar de um escritor surrealista, um senhor debilitado por uma série de problemas de saúde, no meio de uma casa tradicional, com pesados móveis estilo anos 1950. Conversamos um pouco, ligamos o gravador e fizemos a primeira pergunta. Ele pareceu não ouvir o que dissemos, e começou a responder sobre o motivo de ter misteriosamente parado de escrever em 1964, após o sucesso do seu quarto (ou quinto, se considerarmos "Tribo") livro, "O púcaro búlgaro". A resposta era protocolar. Paramos o gravador, e perguntamos se ele tinha ouvido corretamente a pergunta. Ele respondeu que como tinha problemas de fala, preferia decorar as respostas, já que todo mundo fazia as mesmas perguntas. Dissemos que não era isso que queríamos, e ele então falou para recomeçarmos a entrevista, e nos encheu de respostas arrebatadoras, vivas, bem-humoradas e melancólicas.

Em certo momento, Campos de Carvalho declarou: "Eu escrevi os meus livros para a juventude. Quando eu lancei meus livros, o Ênio Silveira, que era o meu editor, me disse que eu só seria lido dali a trinta anos. Só que eu não sabia que trinta anos durava tanto..."

E lá estávamos nós, jovens, trinta anos depois, ouvindo aquele que seria para sempre um mestre para nós. Ao fim da entrevista, pedi para ele fazer uma dedicatória no meu exemplar da sua obra reunida. Ele pegou, viu a dedicatória do meu pai, e escreveu na página seguinte, com letra tremida: "Como segunda dedicatória, muito afetuosamente, Campos de Carvalho". E comentou, ao me entregar o livro: "É sempre bom lembrar que o humor destrói também"...

 

por Sérgio Cohn, editor da Azougue Editorial e produtor cultural.