20 de abril de 2015

COLEÇÃO DE COISAS DESTE E DE OUTRO MUNDO

Quando certa manhã iniciei a leitura de Pequena coleção de grandes horrores, estava francamente com os pés fincados num mundo que me aborrece. Na sociedade brasileira hoje, uma das certezas que se proclama inabalável é a crença de que vivemos em um mundo arruinado, habitado por Leviatã e seu exército... Então, é como se eu fosse levado a dar continuidade ao lastro que me prende à realidade quando leio Distrito federal, conto em que um narrador em 1ª pessoa mal desliza suas incertezas (“Estou acordado ou dormindo?” “Sou pintura ou música?” “Sou presa ou predador?”) junto à presença certa e certeira de entes fantásticos responsáveis por punirem os crimes protagonizados por homens públicos. Assim é que, combinando o real e o maravilhoso, boitatás, cucas, lobisomens, mulas sem cabeça, bichos-papões e curupiras – autóctones ao que somos – ganham a cena para pôr fim aos males que sangram o País, desencadeados pelos corrompidos e corruptores da máquina pública (senador, ministro, deputado e até o presidente da República).

Quando nessa manhã iniciei a leitura da Pequena ‘grande’ coleção de grandes horrores, de Luiz Bras, saí do Distrito federal para entrar em Branco e Gozo doloroso, narrativas de ficção científica, que, situadas em um futuro distópico, acabam por levar o leitor a reconhecer que a matéria narrada não está nem um pouco distante da nossa realidade.  Aquela também em 1ª pessoa, retomando a dúvida peremptória que inicia o primeiro conto – vigília ou sonho –, traz Prometeu, sessenta anos, que acredita estar cumprindo pena em uma prisão mental por um crime, do qual não se recorda, mas que, segundo outro detento (Lúcifer), ambos se encontram na verdade presos em uma rede social danificada (world brain-net). Gozo doloroso abre para uma paisagem (marcadamente um universo paralelo), de fundo obviamente apocalíptico: a humanidade vê-se confinada em um labirinto cibernético quase indestrutível, tendo no sexo seu único brinquedo.

Na esteira da ficção científica, de um modo especialmente sincrético, segue-se aos olhos maravilhados do leitor entregue à observação dos objetos desta coleção um labirinto de 20 bilhões de humanos distribuídos em cenas e vozes desesperançadas e solitárias, condensadas quase sempre no registro narrativo em 1ª pessoa, vozes que dão testemunho sobre uma realidade cuja compreensão lhes escapa.  Assim se estendem à sensibilidade atenta desde narrativas que parodiam e acabam por repropor outros termos ao fantástico convencional (como Seres sensatos e Os homens preferem as mais jovens), em que do torvelinho anárquico desta última que bagunça completamente os tempos (passado-presente-futuro) e a lógica causal dos acontecimentos envolvendo o Viajante do Tempo, sua esposa e seu primogênito àquelas de corte cósmico-mítico (como Fast forward e Ventania). Ligeiro destaque para esta, na qual a origem do universo está surpreendentemente atrelada à história individual da irmã mais querida do protagonista numa amálgama em que conflui, se associa e busca distinguir-se o ínfimo nas imensuráveis massas de energia que constituem o universo. Há as narrativas que parecem evocar Kafka e Sartre: este leitor crítico daquele, quando identifica objetos que subvertem a ordem e impõe-se a humanos não como meio, e sim como finalidade (A pequena caixa chega pelo correio, Total recall e Sermão contra a imaginação). Do biopunk (Selvagens e Meu nome é lobo) aos textos que confluem para a paródia policial (como em O cheiro do pensamento, narrativa em que o narrador protagonista e seus colegas da polícia acabam por confessar sua absoluta impotência diante de um serial killer cuja identidade escapa, mesmo tendo sido descoberta a lógica de suas ações.

Hoje sabemos que é insuficiente ao resenhista estender um olhar procurando situar um objeto particular entre outros objetos similares (no caso, um livro comparado a outras obras literárias de mesmo gênero), dando-lhe apenas provas de sua admiração e encantamento. Nesta coleção de maravilhas contemporâneas, conto a conto o sentido amplia-se e parece evadir-se quanto mais cresce a tensão entre a fantasia hostil e nossa realidade não menos hostil. Lembro-me da busca pelo fantástico em Mário de Sá-Carneiro presente em contos como O homem dos sonhos. “Eu sou feliz porque tenho tudo quanto quero e porque nunca esgotarei aquilo que posso querer. Consegui tornar infinito o Universo – que todos chamam infinito, mas que é para todos um campo estreito e bem murado”. Há uma crença de fundo romântico na Arte que talvez explique o fim precoce do dileto amigo de Fernando Pessoa. Em Sá-Carneiro e no ciclotímico Álvaro de Campos identificamos essa crença na Arte na súmula “Sentir tudo de todas as maneiras”. O que pode a Arte diante da Vida  quando ela “é muitas vezes o efeito colateral de uma severa maldição” (Efeito colateral)?

Assim, avatar ou alien de segredos que talvez só Nelson de Oliveira possa responder, Luiz Bras em Pequena coleção de grandes horrores nos cumula os olhos e o espírito com o desfile de uma coleção de ondas e fantasmas, viralizados espectros, homens sem sombra dispersos entre 20 bilhões de semelhantes que mal suspeitam que são matéria (re)programável a partir do momento em que a medicina genérica e a engenharia genética universalizaram olhos e rostos para consumo no supremo supermercado.

Quando ao fim da tarde despertei da contemplação deste vigoroso e insólito painel de delírios, vozes, cenas, aridez e perversões sem limites, que me proporcionou o desfile desta pequena coleção de grandes horrores, ainda pulsava-me a inquietante estranheza dessas maravilhas pós-modernas de Luiz Bras. Um atualizado Wunderkammer (coleção de maravilhas medievais) de delírios pós-modernos? Prodígios como versão do real, sua denúncia? Um dos maiores méritos da ficção científica tem sido proporcionar ao leitor a capacidade de questionar o tempo presente. Entre realia e mirabilia, há o ritmo febril e alucinatório dentro e entre os contos dando corda às fantasias como codas do real. Vê-se bem que o futuro já está naturalizado no presente. Por outras palavras, parafraseando Breton, o admirável desta pequena grande coleção de narrativas de ficção científica é que não é ficção, e sim real.