30 de março de 2015

Harvey, como me tornei invisível

A verdade é que não sei mais quando um livro infantil deixa de ser dirigido apenas para o público infantil quando se tem em mãos um livro como Harvey, como me tornei invisível, do escritor canadense Hervé Bouchard. Tudo se perde, tudo inexiste, assim como Harvey.

ALTA_Harvey - Como me tornei invisível

A história, que pode ser considerada banal, a morte do pai Bouillon, é algo que é comum a todo e qualquer ser humano. A morte sempre foi e será um tema difícil de lidar entre as pessoas adultas e, talvez, mais complicado ainda quando uma criança tem de enfrentá-la, principalmente quando essa criança possui algumas questões problemáticas, como ser menor do que seu irmão caçula quase uma cabeça de diferença, ou quando essa mesma criança se espelha num personagem que ela criou para poder ser visível para si mesma enquanto não está sendo percebida pelos outros. Harvey é assim. Criou o homem que encolheu depois que uma poeira mágica, que veio do nada, caiu sobre si, vindo a encolher aos poucos, até que foi varrido de casa por sua própria mulher ou algo parecido.

Scott Carré é o homem inventado por Harvey para talvez fazê-lo permanecer em comunhão com o mundo real. Mas isso é o que muitas crianças fazem diariamente, criando fantasias, não para sobrevir aos problemas que os adultos enfrentam, mas para tentar entender a sua significância em presença das coisas. Por que não?

Harvey, como me tornei invisível, acredito, facilmente pode ser utilizado em salas de aulas por professores e em uma leitura feita pelos pais aos seus filhos antes de dormir para tratar da morte. Mas enquanto lia a obra, ilustrada maravilhosamente por Janice Nadau, percebi que não há como não comentar sobre o fundo psicológico existente na narrativa. É impossível não comentar sobre isso. Pois desde o momento em que se percebe Harvey, sentado em uma poltrona sozinho, comendo, de frente para uma tevê, que não sabemos se está ligada ou não, podemos conjeturar inúmeras variantes da solidão. Além disso, nas cinco primeiras imagens do início do livro, a aproximação que a ilustradora faz, quadro a quadro, vindo de longe – é possível ouvir um silêncio profundo que nos faz, intuitivamente, criar sons, como o do vento que passa – até chegarmos ao momento em que Harvey está pedalando sozinho na rua, quando a primeira frase é lançada:

Todo mundo me chama de Harvey.

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Nos faz sentir que o tom melancólico estará presente por toda a obra, principalmente quando chegamos ao final do livro. As imagens de Nadau, ao lado das frases significativas de Bouchard, nos levam para dentro do livro, é como se fôssemos um dos personagens, dos vizinhos que comparecem à presença da ambulância frente à casa dos Bouillon’s. Não é qualquer livro que consegue ter esse poder com a narrativa.

E, aos poucos, essa solidão é possível ser vista durante todas as passagens do livro. Desde o momento em que pedala sozinho; quando fica a esperar Scott Carré, em seu ‘barco’ descer pelo bueiro, ao lado do irmão; ao chegar em casa e perceber que a mãe está só, falando só, em seu quarto; quando a noite chega e vai deitar em sua cama, sob o beliche do irmão, que dorme tranquilamente, e quando tem de ir até o velório de seu pai.

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Harvey se torna invisível porque não há mais, para ele, quem o perceba, quem o escute, quem o entenda. Seu pai é, assim, a falta de um olhar que guia a vida, como se fosse necessário a existência do pai Bouillon para que a existência de Harvey exista. Essa invisibilidade nunca deixa de ser momentânea, pois ao perdermos um ente querido como o nosso pai é como se o chão sumisse, o coração parasse e a escuridão tomasse conta de nossas vidas. Harvey não é apenas uma criança com medo ou tentando fugir da realidade, Harvey é qualquer um de nós.