30 de março de 2015

A unha e o sorriso

Esbofeteou-me. O desgraçado me esbofeteou. Os carros corriam mais nervosos que de costume nas avenidas poluídas e ricas que emolduravam aquele quarto de hotel onde o cafetão filho da puta me esbofeteou. Não tenho por que falar bonito, não tenho contas a prestar a nenhum corno, que vivo sozinha e não não não mesmo preciso de ninguém. Meu alimento é a solidão desde o primeiro até o último minuto do dia. Nunca saboreei tanta liberdade como no dia em que percebi isso. EU não preciso de ninguém, de ninguém mesmo. Gosto de repetir isso sempre, meu mantra. Não preciso de ninguém. Eles é que precisam de mim. E eles são um grande porre, a maioria é um monte de carne frouxa quase se desgrudando do esqueleto mole. Uns putos.

Lógico que também não precisava dele, mas tinha saudade do seu corpo apertando o meu. Gostava de saber que ele tinha a quem quisesse, mas só queria a mim. Ele não passava uma semana sem me procurar. Tinha sido assim desde a primeira vez. Era minha vingança. Olhava praquele bando de putas finas sabendo que eu era muito melhor que qualquer uma delas. Era melhor que todas juntas. Homem que passava por mim, voltava. E, se não voltasse, nunca mais me esquecia. Eu seria sempre a única água a matar de verdade a sede. E era só eu, eu só. Em mim, não havia espaço nem pras lembranças. De quê?

Comia minha solidão como quem come a própria carne com prazer. Ninguém pode entender isso. Tentei falar com algumas pessoas. Tentei muito falar com muitas pessoas. Pra quê? Falar pra quê? Só funcionava com o espelhinho preto que desde o começo carrego na bolsa cara. Gosto de falar com ele. Como mesmo ele veio parar comigo? Lembro de quase nada. Muito menos de quando meu rosto começou a crescer. Coisa secundária. Tem tanta coisa que, crescendo, dói mais... Mas parece que meu rosto cresceu, hoje já não cabe na ilhazinha cercada de frágeis muralhas pretas. Só eu sei disso. E também só eu sei que o olho esquerdo socinho é suficiente pra ocupar toda a superfície lisa. Percebi que quase tudo em mim me escapa. Dane-se. Foda-se. Melhor assim.  Sem ninguém perceber, a solidão vai me comendo com sabor, que alguém tem que ter gosto nessa vida.

Parece que foi hoje. Quando o filho da puta me esbofeteou, não resisti. Pulei em seu peito e arranhei seu rosto. Perdi uma unha postiça e nada mais. Juro por deus: nada mais. Juro por essa luz que hoje ilumina meus dias debaixo dessa árvore velha e grande: só ganhei. Fico aqui quieta vendo os idiotas passando sem parar do início até o fim do dia enquanto eu como minha solidão e gargalho calada. Só eu sei que de verdade nada tem sentido, só eu sei isso porque já tive tanto, tanto que já nem sei mais o que tive.

Só sei que tive tudo que qualquer idiota normal quer ter, mas não encontrei nada morno pra esquentar a coceira que pinicava minha alma. Puta como eu tem alma nobre, quase divina, uma alma acima da média, sim senhor. É preciso ser tudo pra abandonar tudo e ganhar o mundo. E o mundo não é nada mais que um  banco de praça. Filosofia barata? Não me agrada pensar. Só sei que quanto maior a praça melhor, porque mais súditos se encontram. E que vá pra merda quem pensa diferente. Não me importo com o que os retardados que circulam por aí pensam. E acho que não pensam. Ponto.

Ele me esbofeteou uma só vez, e eu arranquei-lhe o olho e desapareci. Carrego-o na tigela verde e estendo-a pros passantes que sempre deixam algum trocado. Eles são assim generosos porque sou linda. Sei que sou, por isso recebo muitas ofertas, mas não quero. Nunca mais vou me deitar com ninguém. Eu não existo. Sou uma grande e pulsante cicatriz. Disse isso, sorrindo, sem falar, praquele rapaz esquisito que gosta de me olhar. Com ele, só com ele, consegui me comunicar. E até consegui entender o que ele me disse. Por isso sorrimos como se nos conhecêssemos desde quando éramos crianças. Filho da puta nenhum consegue esbofetear gente como nós. Somos bichos da metrópole!  Acho que talvez só ele também pense. Quem sabe um dia eu volte a vê-lo.