18 de março de 2015

O HOMEM DO CASACO VERDE

São oito horas. Sentado no lugar de sempre, o homem do casaco verde cumpre a rotina diária. Outro homem, no seu posto à entrada da fábrica, indiferente aos anos que passam, diz que ainda sonha com dias melhores. Uma mulher ainda nova controla o ritmo dos seus suspiros pelo som do ar comprimido a soltar-se dos mecanismos em movimento. Entre os que trabalham sentados, os que trabalham levantados, e os que trabalham nas diferentes posições, a lista dos que habitualmente estão na fábrica continua até aos setenta e oito.

O homem do casaco verde é muito considerado. Tirando, talvez, uma velha que tem uns óculos de lentes muito grossas, que trabalha na cantina, e que já disse mal do homem do casaco verde, todos gostam dele. Há mesmo quem o ame.

Às nove horas, o rapaz que costuma preparar correspondência e pequenas encomendas que seguem pelo correio foi chamado ao gabinete do gerente. A mulher da limpeza, que questionava, admirada, o que quereriam do rapaz, também. Mas só às dez. Ainda passam poucos minutos das nove.

Uma ajudante de laboratório, na fábrica há dezasseis anos, diz que algo de estranho se passa naquele dia. Diz o mesmo há dezasseis anos.

Por volta das nove horas e trinta minutos, o gerente recebe a visita de quatro homens. São os mesmos homens que, ao final da tarde do dia anterior, estiveram no gabinete do gerente.

O homem do casaco verde terá cerca de sessenta anos. A pele é luzidia. Na cara, de cada um dos lados, duas cicatrizes transmitem uma simetria esquisita. A altura deverá andar pelo metro e oitenta. O corpo é de homem forte, talvez por ali já tenham andado fortes músculos. A falta de exercício ou as contingências da idade fizeram com que agora penda para a frente um flácido apêndice abdominal. Não é, porém, o gordo bonacheirão de quem todos gostam. São três as razões: não é gordo, sendo a flacidez facilmente disfarçada por qualquer camisola e calças em correta posição de cintura; não é bonacheirão; não é particularmente simpático, sendo, isso sim, extremamente educado. Mas é aquele de quem todos gostam. Tirando, talvez, a velha das lentes grossas que trabalha na cantina.

Falta um minuto para as onze horas. O responsável da manutenção dirige-se para o gabinete do gerente. Estratégia, mercado, rácios. Aquelas palavras devem ser para outro. O próprio gerente não parece muito convicto do que diz. Estratégia, mercado, rácios. Puré, piscinas, futebol. Seriam quase a mesma coisa, não fora as palavras estratégia, mercado, rácios, permitirem imprimir outra gravidade ao discurso. Na prática, contudo, para o chefe da manutenção, tinham exatamente o mesmo valor e aplicação prática para aquele ou qualquer outro dia de trabalho.

O homem do casaco verde vira-os a todos a passar para o escritório do gerente. Este foi o único critério usado para a convocação dos funcionários.

Algo de estranho se passa neste dia. Tão estranho que não é a ajudante de laboratório quem o diz. O homem do casaco verde pressente estranheza no ar.

O homem do casaco verde fala pouco. Ajuda muito. Na fábrica não diz que não. Não diz que não a colegas. Não diz que não a particulares ou associações. Ajuda. Com trabalho, com dinheiro, com bens. Muito ou pouco. O que pode. Todos gostam muito dele (com exceção, talvez, da velha da cantina). Dele só há uma apreciação e bem objetiva: é muito boa pessoa. Há mesmo quem o ame.

O homem do casaco verde gosta de olhar para longe. Fixa um objeto distante e olha. Nunca perde o olhar, apesar da distância do que gosta de ver. Tem o mesmo trabalho há quase trinta anos. Gosta do que faz. A gerência também.

É meio-dia. O funcionário que entrou há três dias vai ao escritório do gerente. Passado uma hora ainda lá está. No homem do casaco verde intensifica-se a sensação de estranheza. Não sabe do que se trata, mas, pela primeira vez em quase trinta anos, sente uma forte vontade de ir ter com alguém e falar. Quer ir ter com a ajudante de laboratório e dizer que algo de estranho se está a passar. Quer ir ter com a velha da cantina. A velha que nunca correspondeu à sua cordialidade. Descobre que não quer comer. Não tem vontade. Momentaneamente, estabelece uma errada relação entre a falta de apetite e a atmosfera estranha que lhe corrompe as dúvidas e os sentimentos. A relação não está errada, apenas desordenada, e em segundos o homem do casaco verde organiza a hierarquia entre as partes: como é habitual, a falta de apetite não é a causa, mas a consequência da estranheza. A esta não encontra origem. Não tem apetite e não vai almoçar. Na cantina, notam que falta. Quando lhe perguntam, com preocupação, sobre a razão da sua ausência, apenas refere uma ligeira dor de estômago, que não tem. Quando vê a ajudante de laboratório, sente uma forte vontade de correr para ela, de falar, de estranhar, mas controla os impulsos.

O funcionário que entrou há três dias, na segunda, ainda não saiu do escritório. Os quatro homens que estiveram no dia anterior e de manhã chegaram. Desta vez, porém, não chegaram juntos e trouxeram dois carros. Entraram para o escritório do gerente, onde se juntaram ao próprio gerente e ao funcionário novo. São treze horas e trinta minutos.

Às duas da tarde, o homem do casaco verde é chamado ao escritório. Não tem fome, nem sente nada de estranho. Por instantes, flutua longe de pensamentos e sentimentos, e distante da carne. É como se tivesse perdido a matéria e o espírito e permanecesse num estado entre o diabólico e o divino. Entre o inferno e o céu. Ele nunca soubera fazer a distinção entre céu e inferno. Fixa o objeto mais distante que consegue e abre, finalmente, a porta do escritório. O primeiro a falar foi o colega novo. Quando este disse a primeira palavra, o homem do casaco verde soube logo as duas que lhe seguiriam. Há décadas que não ouvia o seu verdadeiro nome próprio e os apelidos que herdara de pai e mãe. Naquele instante, sentiu-se nostálgico de uma infância perdida, e foi sem surpresa que ouviu o que de imediato se seguiu:

─ O senhor está detido.

Depois, seguiu-se um rol de acusações, quase todas muito graves. Por fim, foi levado algemado num dos carros da polícia.

São oito horas. Sentado no seu lugar, o homem do casaco vermelho inicia um novo desafio. Não é fácil substituir um funcionário exemplar. De resto, tudo na mesma. A ajudante de laboratório continua a encontrar estranheza nos dias que passam. A velha das lentes grossas continua a não gostar de homens de casaco verde, mas foi das poucas que não comentou o sucedido no dia anterior. Isso foi ontem. Hoje é um novo dia. E amanhã será igual. E assim, todos os dias serão novos dias. Até se descobrir que há um dia no passado que não se conseguirá mudar.

Os próximos dias serão mais calmos. E foram.

Na terça, os jornais contaram toda a história. Na quarta, especulou-se muito. Irá o homem do casaco verde ser extraditado para o seu país? Seriam a suas virtudes fingidas? Alguns, poucos, gostariam de saber a razão de só na terça os jornais contarem toda a história, estando o homem detido desde quinta. O que se passou durante o fim de semana para não haver investigação jornalística? Os que se acham mais informados dizem que o homem do casaco verde vai ser julgado no Tribunal de Haia.

As próximas semanas serão mais calmas. E foram.

Uma mangueira de ar soltou-se da máquina e provocou muito alarido. A ajudante de laboratório afirmou convictamente que andava há vários dias a dizer que estava tudo muito estranho.

O homem do casaco vermelho despediu-se, dizendo que não aguentava a pressão do trabalho. A velha morreu. De resto, tudo na mesma.

Já todos se esqueceram do homem do casaco verde. Isso agora é história para contar em serões de convívio. Não tem amigos. É certo que ainda há quem o ame. Mas isso é o amor, que é assim. De resto, tudo na mesma.