12 de março de 2015

Os muros da casa da minha irmã

Abri a porta rapidamente e fechei-a atrás de mim, cortando o frio do lado de fora. Roupas pesadas: casaco, cachecol, gorro, luvas, e uma infinita falta de paciência para retirar tudo e colocar tudo novamente pouco depois, nem que fosse pra ir à esquina. Mas eu estava em Londres na casa da minha irmã, interagindo com as pessoas e seus espaços, que por quase um mês também seriam meus. Eu, que chegara ali com todos os medos e achaques advindos da convivência com a cultura a qual pertenço; que não cheguei ali incólume, vivenciando diuturnos choques de realidade.

Ao pé da porta, a escada íngreme que leva o recém-chegado à casa propriamente dita, minha irmã aparece lá no outro extremo, olha pra baixo e diz rindo, ao me ver dando uma volta na chave: “Aqui não se trancam portas”. Parei e me percebi formando um meio-sorriso nos lábios. Acostumado que sou ao ato-contínuo de me precaver de quaisquer males aonde quer que vá (ou chegue), fui logo colocando meu hábito em prática. Desfiz a volta na chave e retirei-a da fechadura. De fato, dias antes, ela havia me entregue uma cópia da chave de sua casa, informando que eu só precisava trancar a porta quando fosse sair e ninguém fosse ficar em casa. Retirei os sapatos, guardei a chave no bolso do casaco e subi a escada, cansado de mais um dia explorando a cidade e seus meandros.

No quarto, me peguei pensando que ali não havia muros. Aliás, em lugar nenhum. Quando muito, um muro decorativo, baixinho, como um detalhe da casa. Em toda a vizinhança onde habita minha irmã, vê-se calçadas, espaços verdes e as casas propriamente ditas. E só.

A ideia de uma cidade sem muros nos remete não apenas a uma cidade sem violência, mas a mim parece que também a um convite, um aceno: não existem barreiras entre mim e quem quer que seja, venha, façamos amizade, compartilhemos, aproxime-se, chega mais, chega mais.

Tal concepção não poderia estar mais distante da realidade. Os muros lá são imaginários: todo mundo tem o direito de ir e vir assegurado, mas ninguém invade o “espaço do outro”. Você jamais verá, por exemplo, um estranho caminhando pela propriedade desmurada que você tem, a menos que esse estranho esteja mal-intencionado, e isso também é algo de que não se houve falar. Assim, os espaços estão abertos, mas mudos. Se te convidam a alguma coisa, é ao respeito. Você fica aí e eu aqui, só se aproxime se convidado – e você dificilmente será.

Eu havia saído do calor de onde moro para ir ao encontro da minha irmã e do seu marido em Londres, em pleno inverno, certo e seguro de que lá o clima que eu não teria na temperatura teria dentro de casa não através de aquecedores de ambiente, mas através do amor fraterno, desses que só sabe quem tem um irmão ou irmã que há muito não vê. Só quem nunca amou não sabe nem entende que no coração dos afetos é sempre verão. Por mais que existam períodos de um frio rigoroso, dores metafísicas e empíricas, o amor aquece, mantém vivo e digno de fazer sonhar as almas mais indiferentes.

Mal sabia eu que a temperatura iria subir para níveis insuspeitáveis, e que bem no meio da ponte que liga dois extremos, duas terras complementares, eu e ela, existiria um muro de Berlim ainda por ser demolido.

A casa da minha irmã não tem muros. Ela é linda, é aconchegante, e fica numa rua que os londrinos consideram movimentada (porque seguramente nunca viram o que significa uma rua movimentada no Brasil). Minha irmã não cansava de dizer que mora numa casa “estilo vintage”, e é bem isso mesmo.

E embora nos falássemos todas as semanas por mensagens de telefone e isso só aumentasse nossa saudade e ansiedade para quando enfim nos encontrássemos, fazia cinco anos que não nos víamos, e ninguém permanece impávido e imutável durante tanto tempo. O que eram muros imagináveis rapidamente se tornaram muito reais para nós, que tivemos de conversar, demonstrar muita resiliência e uma firme capacidade de compreensão mútua. Quando antes os muros que se interpunham em nossa casa eram os criados pelos nossos pais, descobríamos que também tínhamos os nossos. Por mais que quebrar esse gelo, em teoria, seja mais fácil com o seu irmão ou irmã, como fazê-lo sem saber em que tipo de suscetibilidade você pode estar tocando, quando o outro, romantizado antes do encontro, se mostra ser um enigma?

Família, para mim, sempre me pareceu a Esfinge de Tebas pronta para me devorar, porque a possibilidade de decifrar o que há por trás dos códigos de cada um de seus membros nunca foi tarefa do reino do possível. Naturalmente, há famílias que se dão muitíssimo bem, famílias que se unem com a facilidade só vista em porta-retratos, mas na vida real.

Nunca estive numa dessas. Família para mim sempre teve o sentido de luta árdua, mas não em vão, de fazer com que funcionasse, ainda que compreender todos os mecanismos que giram em torno de seu funcionamento seja uma tarefa para ser delegada a deuses, e olhe lá.

Abdicar. Esta pareceu ser a palavra que demonstrava sensatez. Eu abdicaria dos meus gostos pessoais, de emitir certas opiniões e fazer certos pedidos, e ela fez o mesmo. Enquanto pudemos, foi assim. Depois não foi mais e eu quase pedia pra regressar ao Brasil antes do previsto, mas as coisas se acalmaram e um prazer em estar ali, tudo relativizado, pôde ser novamente sentido.

Somos este complexo feixe entrecruzado de linhas e setas que não se unem em ponta alguma. Algumas vezes, percebemos em nós mesmos as discrepâncias, lutamos contra elas e o que temos? Algumas, conseguimos mudar, outras, nem (com) o tempo.

Estão aqueles que acabaram por esbarrar no mesmo sobrenome condenados a gostar uns dos outros?

Minha experiência diz que não. Nos resta elegermos aqueles que desejamos por perto, consciente ou inconscientemente, e administrar os demais de longe ou nem isso.

Ninguém nasce com a obrigação de quebrar muros, diques, barreiras, represas que se vão construindo ao redor daqueles que compartilham apartamentos e fins de semana muitas das vezes apenas por mera convenção.

Se é feita a escolha do querer trazer para perto, que ela seja feita sabendo que também terá dificuldades a serem vencidas. Há quem pense, ingenuamente, que a ausência de convivência torne-a mais fácil, quando nos deparamos com ela por um motivo ou outro. De forma alguma. Não conviver com o outro implica imediatamente em conhecê-lo menos, e se há a necessidade de uma convivência por alguns dias ou semanas, para que ela seja o mais harmoniosa possível é preciso não causar um terremoto, nem mesmo um abalo sísmico, na vida de quem está do lado de lá, sob o risco de levar o pouco que há à bancarrota.

Quando me deparei com a realidade, compreendi, chocado, que havia muito pouco que eu pudesse fazer em tempo tão exíguo. Como explicar do amor que eu sentia, da vontade de sermos grandes amigos, de podermos contar um com o outro pro que quer que fosse, e fazer-se entender profundamente, quando a geografia nos distanciara e agora os atritos pareciam demonstrar que os limites iam para além dos territoriais?

O sentimento de frustração me consumia. Resignado, e com o sentimento de estar lutando contra algo maior que eu (Freud, me explica, por favor!), algumas quedas foram inevitáveis.

Sem que esta proposta estivesse claramente sobre a mesa, é preciso relembrar o passado, conversar sobre ele, sofrê-lo novamente, para enterrá-lo – mas será essa tarefa exequível?

Por tudo o que sei, saí de lá com muros erguidos. Um pouco menos altos, mas estavam lá. Sempre estarão, seja entre mim e ela, seja entre quem for. Mas é a minha irmã, cujas idiossincrasias não desmerecem suas qualidades, sua vontade de fazer nossa amizade dar certo, seu chamamento para que estejamos juntos, apesar do passado. E também do presente, sempre que ele se fizer presente.

Vim embora no dia certo. Com promessas de retorno.