23 de janeiro de 2015

Nonato, capítulo 1

1.

Ainda no ônibus, há alguns quarteirões de casa, Nonato soube que sua mãe estava morta. Com uma certeza vinda de lugar nenhum (como todas as coisas que escapam ao reino do natural, a certeza apenas era), o rapaz foi preenchido por um luto difuso e cansado. Como entrar num sonho, onde um absurdo se conectava ao seguinte com lógica indiscutível. Ele apenas deslizou da realidade, onde tudo estava como deveria estar, e entrou em outro mundo, semelhante, porém irreconhecível, feito de dormência e pensamentos meio pensados.

            Por isso, Nonato não se surpreendeu quando, ao descer do coletivo, avistou as luzes vermelhas e azuis colorindo a pequena multidão em sua rua. Ele sabia que encontraria os policiais em sua casa, conversando com seus vizinhos, remexendo em suas coisas, vasculhando seu quarto, levando sua mãe embora.

***

Nonato lembrava das luzes de pequeno. Às vezes, acordava no meio da noite com o som de gritos e fogos de artifícios de adultos. Era como uma festa de pesadelo: os gritos eram palavrões e os fogos explodiam uma vez só, abafados e sem cor. Quando isso acontecia, sua mãe vinha buscá-lo na cama e ficavam os dois sentados no chão, de luz apagada e longe da janela.

Às vezes as luzes vinham, às vezes não. Sua mãe fazia cafuné e cantava baixinho, mas ele fazia de tudo para não dormir. Se conseguisse ficar acordado, talvez ouvisse a correria dos vizinhos e os estampidos se afastando noite afora.

Quando as viaturas chegavam, as luzes pintavam o quarto de azul e vermelho. O barulho aumentava (todo mundo queria falar com os policiais) e a rua se enchia de gente, como se houvesse amanhecido antes da hora. Nonato gostava de dormir vendo a parede mudar de cor, parecia um teatrinho de sombras.

***

Semanas depois, enquanto morria no asfalto de uma rua sem nome, Nonato lembrou das luzes uma vez mais. A perna esquerda doía quando tentava se mover, por isso  o corpo rígido na mesma posição, deitado de costas, olhos postos no céu noturno. As estrelas talvez brilhassem por trás das luzes da cidade.

Nonato sabia que ninguém viria por ele. Mesmo que a sorte enviasse um passante notívago, Nonato não poderia ser visto. Morreria invisível, numa posição incômoda, encarando um abismo de cabeça para baixo. Ele detestava dormir no escuro. Se as luzes chegassem, atraídas pelo tiroteio, ele poderia pelo menos assistir as sombras coloridas e dormir como antigamente, no colo de sua mãe.

***

Ninguém o reconheceu enquanto se espremia entre o amontoado de curiosos, tentando chegar à sua casa.

E a viúva tinha filho? É, um alto, eu acho, talvez magro, talvez não, ou, sei lá, acho que nem tem mesmo. Coitada. Acontece.

Um absurdo atrás do outro. Quando Nonato alcançou o portão da casa, o sonho ganhou tons de história policial. A descrição da cena em todos os filmes veio à sua cabeça: Os sons da rua emudecem, a trilha sonora sobe (deixa para os violinos). Tudo se move em câmera lenta enquanto ele atravessa a fita amarela. Seus lábios tremem. Um policial, de bloquinho na mão, o encara com pesar. Parece dizer que coisas ruins acontecem com pessoas boas.

A realidade, porém, acontecia off-screen. Nonato passou pelo pequeno portão procurando dentro do peito pela tristeza. Ele deveria chorar agora? Sem surpresa, percebeu que não sentia nada além da confusão sobre o que deveria sentir. Olhou em volta, procurando orientação, mas, como ninguém se dera ao trabalho de pará-lo, ele apenas entrou na sala, tão pequena que mal continha o sofá e a televisão.

***

Edmilson também acordava no meio da noite com os gritos e estampidos, mas ninguém vinha até seu quarto. Ao invés disso, ele precisava se encolher debaixo do lençol, sufocando o medo para não acordar o irmão mais novo. Se o bebê despertasse chorando, os gritos começariam novamente, dessa vez dentro de casa.

Algumas noites, Edmilson andava na ponta dos pés até a beirada do berço e observava o pequeno Roberto dormir. Ele seguia com interesse os movimentos do minúsculo peito, inspirando e expirando. Tinha medo de tirar os olhos, mesmo que por alguns segundos, e o movimento parar para sempre. Algumas noites, ele não saia da cama para evitar o chão. Não queria expor os pés descalços aos monstros que viviam debaixo da cama. Em outras noites, ele tinha outros medos, com garras e cintos e pêlos no peito.

Quando Edmilson matou a mãe de Nonato, ele também sentia medo. Precisava de dinheiro para comprar crack e não temer mais nada. O medo do medo o fez invadir a casa da viúva sem um plano claro na cabeça, pensando em levar talvez alguns trocados, talvez a televisão de LED. Seria uma operação simples, entrada e saída, sem violência. Apenas um susto de leve na velha, o que seria até uma boa lição; o mundo é um lugar perigoso, precisa tomar cuidado.

O problema é que, naquela noite, tudo parecia feito de fumaça. Uma variável difícil de prever e controlar. O crack fumado mais cedo invadira os pulmões de Edmilson, invadira sua corrente sanguínea, transformando todo ele em pedra. Quando chegou à casa da viúva, a porta cedeu sob sua mão, escorrendo entre os dedos. Atravessou os móveis como se não estivessem ali, ou como se estivessem, mas de um jeito diferente. Na cozinha, observou com interesse a senhorinha de camisola que gritava, sem distinguir as palavras. Precisava fazê-la parar com o escândalo e contar onde guardava as jóias (ela tinha jóias em algum lugar, não era isso que ele havia vindo buscar?). Olhou para as próprias mãos, confuso, e se viu alcançando a faca de cozinha jogada no escorredor de louças.

Depois, Edmilson diria que não lembrava de coisa nenhuma, mas era mentira. Se fechasse os olhos, sentiria a faca segura em sua mão, atravessando o olho direito da viúva como se fosse manteiga. Dos golpes que vieram depois, sim, ele não guardava nenhuma recordação, nem dos gritos.

***

Nonato não lembrava o nome de Edmilson. Ele era apenas o moleque da água, que vinha de bicicleta trazendo o garrafão de vinte litros.

Mais de uma vez, Nonato oferecera a faca, a mesma faca, para que o moleque cortasse o lacre e pudesse trocar o garrafão, sem um segundo pensamento, sem uma ponta de hesitação. Existem muitas maneiras de ser invisível.

***

Nonato entrou na cozinha. O armário maior estava tombado sobre a mesa, as portas abertas despejando seu conteúdo pelo chão. Sentiu cheiro de ferrugem.  Ele não queria olhar para baixo. Pensou em voltar para a rua e dizer que tinha dado tudo certo, ele vira a mãe morta, já havia cumprido sua parte.

Mas não era assim que sua mãe o havia criado. Ele pensou em todos os silêncios que compartilhavam e desejou ter feito mais perguntas. Quem é a senhora? Por que eu? Qual o ponto disso tudo? O peso das respostas ausentes comprimia seu peito, impedindo o ar de entrar.

Quando olhou para baixo, precisou se apoiar na mesa, com as pernas moles. O corpo da viúva se transformara numa massa de sangue e farrapos de tecido, picados juntos pelas facadas. O sangue também cobria o rosto de sua mãe, empapando o cabelo e escondendo o olho perfurado, mas não o suficiente para encobrir o líquido branco escorrendo pelas bochechas. Nonato fechou os olhos e foi atingido pelo cheiro. Uma mistura de fezes, urina e ferragem que o fazia voltar à velha Ponte Metálica sendo corroída pelo oceano e pelo mijo dos bêbados na Praia de Iracema.

Acontece.

Com muito custo, Nonato olhou para a louça limpa, empilhada no escorredor, e deu meia-volta. Desceu os degraus de entrada e vomitou sobre os sacos de lixo do vizinho na calçada. A dor no diafragma limpou sua cabeça do fedor de morte. Sem ar, ele olhou em volta, as luzes coloridas transformando a pequena multidão, a rua, a noite inteira num teatro de sombras.

Nonato não sabia o que fazer, mas sabia que não queria ficar ali. Sem precisar direito para onde estava indo, atravessou a multidão despercebido. Ninguém olhou uma segunda vez para o filho da viúva, duas vezes órfão. Não poderiam, mesmo se quisessem. Nonato era invisível e apenas as pegadas tintas de sangue marcaram sua passagem.


Márcio Moreira é autor da coletânea de contos Odisseu e colunista do site Spoilers.