22 de agosto de 2014

Perfil Poesia Brasileira, Gilka Machado: “Como uma gata errando em seu eterno cio.”

O teu olhar

luzente,

lindo,

ora descendo, ora subindo,

a me fitar...

o teu olhar

manso, indolente,

dá-me a impressão de uma serpente

pelo meu corpo a se enroscar.

(Gilka Machado)

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Mesmo em uma época na qual se fala tanto em feminismo como a que vivemos hoje, a busca pela literatura que demonstra tal corrente ainda é escassa. Quem procura o feminismo na literatura tem a tendência de se ater a Simone de Beauvoir e, no caso brasileiro, a tão cultuada Hilda Hilst – que virou febre nos últimos anos pela presença da força feminina em sua obra.

Poucos conhecem Gilka da Costa de Melo, que mais tarde viria a ser Gilka da Costa de Melo Machado, ou simplesmente Gilka Machado, como fora – e é – conhecida pela minoria que tem o prazer de informar-se sobre suas criações. O motivo de concatenar o feminismo e Gilka Machado é simples: Gilka foi a precursora da poesia erótica feminina no Brasil.

Gilka nasceu em 12 de Março de 1893, na cidade do Rio de Janeiro. Sua família tem origens artísticas, o pai, crystaes-2BpartidosHortêncio da Gama Souza Melo, era poeta, e a mãe, Thereza Christina Moniz da Costa, era atriz de rádio e teatro. Ainda, tinha como avô Francisco Moniz Barreto, que foi apelidade de Bocage brasileiro, de onde é dito que Gilka tirou inspiração para inovar em sua poesia.

A vocação para poesia era notada desde a infância, tendo recebido prêmios diversos pelo seu desempenho no assunto ainda na escola. Porém, iniciou sua carreira como poetisa a partir da era pré-moderna. A obra de Gilka retrata bastante tal período, mostrando-se simbolista dedicada com traços parnasianos. Seu diferencial para a literatura é que causou um grande rebuliço ao se desgarrar das amarras do que era a poesia feminina na época, deixando a corrente conservadora de lado e apostando em uma poesia ousada, carregada de liberdade e erotismo. Sua produção é sensorial, trazendo em si o amor carnal, o prazer sexual e a manifestação da alma feminina, com todos os seus anseios, vontades e desejos. (E que prazer o meu! que prazer insensato!/– pela vista comer-te o pêssego do lábio,/e o pêssego comer apenas pelo tato).

Além de lançar-se como pioneira na libertação poética da mulher, Gilka também foi ativista política e social de grande importância. Em 1910, foi uma das idealizadoras do Partido Republicano Feminino, que tinha como objetivo a luta pelo sufrágio feminino, abrindo o caminho para discussões sobre os direitos das mulheres. No mesmo ano, casou-se com o poeta e jornalista Rodolfo de Melo Machado – tornando-se Gilka Machado – falecido 13 anos depois, com quem teve dois filhos. O rapaz, Hélio, morreu em 1979, é o tema de seu último poema ("Meu menino"). A moça, Eros, fez-se uma grande bailarina, reconhecida internacionalmente pelo nome de Eros Volúsia.

Seu livro de estreia é Crystaes Partidos, de 1915, carregado da estética simbolista e traz em si um erotismo chocante para a massa poética. Configuram-se também como obras importantes de Gilka: Meu Glorioso Pecado (1928) e Sublimação (1938), este último trazendo, além de toda a sensualidade, uma notável temática social e o primeiro destacando com excelência todos seus temas abordados.poesia-2Bcompleta

Em 1933, foi eleita a maior poetisa brasileira pela revista O Malho, por vários intelectuais. E em 1977, assim que a Academia Brasileira de Letras abriu espaço para a entrada de mulheres, Gilka foi incentivada por muitos a concorrer – com ênfase a Jorge Amado ("Caso venha a se candidatar, saiba que tem o meu voto, nos quatro escrutínios") -, mas não o fez. Recebeu o maior prêmio da Academia, o Machado de Assis, em 1979.

Suas Poesias Completas foram editadas por ela mesma, escolhidos 184 poemas, em 1978, três anos antes de sua morte. Faleceu em 17 de Dezembro de 1980, na sua cidade de origem, o Rio de Janeiro.

O grito de uma alma que clama por liberdade, tanto político-social quanto existencial, está arraigado na obra de Gilka Machado. Há, em seus escritos, o toque sensível do feminino acompanhado da força de quem luta, seja através do erotismo (que fora utilizado por ela como ferramenta para a alforria) ou da exposição do que é ser mulher.

 

 

POEMAS

 MEU GLORIOSO PECADO III

A que buscas em mim,

que vive em meio de nós,

e nos unindo nos separa,

não sei bem aonde vai,

de onde veio,

trago-a no sangue

assim como uma tara

 

Dou-te a carne que sou...

Mas teu anseio

fôra possuí-la -

a espiritual, a rara,

essa que tem o olhar

ao mundo alheio,

essa que tão somente

astros encara

 

Por que não sou

como as demais mulheres?

Sinto que, me possuindo,

em mim preferes

aquela que é

o meu íntimo avantesma...

 

E, o meu amor,

que ciúme dessa estranha,

dessa rival

que os dias

me acompanha,

para ruína gloriosa

de mim mesma!

 

PERFUME

À Alberto de Oliveira

 Vaga revelação das sensações secretas,

das mudas sensações dos mudos vegetaes;

arco abstracto que afina as emoções dos poetas

e que ao violino da alma arranca sons iriaes.

 

Ó perfume que a dôr das plantas interpretas

e encerras, muita vez, desesperos mortaes!

busco sempre sentir-te errar, nas noutes quietas,

quando teu floreo corpo em somno immerso jaz.

 

És um espiritual desprendimento ao luar,

si á noute sonha a flor do calice no leito,

e és a transpiração da planta á luz solar.

 

Mas, si acaso, te estrahe o homem - sêr destruidor,

perfume! - descomposto, inane, liqueifeito,

és a essencia, és a vida, és o sangue da flôr.

 

FELINA

Minha animada boa de veludo,

minha serpente de frouxel, estranha,

com que interesse as volições te estudo!

Com que amor minha vista te acompanha!

 

Tens muito de mulher, nesse teu mundo,

lírico ideal que a vida te emaranha,

pois meu ser interior vejo desnudo

se te investigo a mansuetude e a sanha

 

Expões, a um tempo langoroso e arisca,

sutilezas à mão que te acarinha,

garras à mão que a te magoar se arrisca

 

Guardas, ó tato corporificado!

A alta ternura e a cólera daninha do

meu amor que exige ser amado!

 

OLHOS NUNS OLHOS

De onde vêm,

aonde vão teus olhos,

criança,

tão cansados assim

de caminhar?

Dessa tua existência

nova e mansa

como pode provir

um tal pesar?

 

A alma de fantasia

não se cansa!

Nunca existiu tristeza

nesse olhar;

é que a minha mortal

desesperança te olha

e nos olhos teus

vai-se espelhar

 

Com toda a vista

em tua vista presa,

penso: uma dor

tão dolorosa assim

só há na minha

interna profundeza...

 

Não me olhes mais,

formoso querubim!

que vejo nos teus olhos

a tristeza

dos meus olhos

olhando pra mim

 

ESBOÇO

Teus lábios inquietos

pelo meu corpo

acendiam astros...

e no corpo da mata

os pirilampos

de quando em quando,

insinuavam

fosforescentes carícias...

e o corpo do silêncio estremecia,

chocalhava,

com os guizos

do cri-cri osculante

dos grilos que imitavam

a música de tua boca...

e no corpo da noite

as estrelas cantavam

com a voz trêmula e rútila

de teus beijos...

 

ENCANTAMENTO

A Francisco Alves - O perfeito intérprete da canção brasileira

Canta,

que tua voz

ardente e moça

faz com que eu sinta a meiguice

das palavras que a vida não me disse.

Para te ouvir melhor

abro as janelas

e fico a sós

com tua voz

sonhando

que a noite está cantando

pelos lábios de fogo das estrelas.

Canta,

boca febril que não conheço,

que nunca me falaste e que me dizes tudo!...

Ave estranha

de garras de veludo,

entoa para mim

uma canção sem fim!

Canta,

que ao teu canto vejo

em tudo

quietude atroz

de insatisfeito desejo

Canta,

— em cada ouvido há um beijo

para tua linda voz.

(...)

 

REFLEXÃO 

Há certas almas

como as borboletas,

cuja fragilidade de asas

não resiste ao mais leve contato,

que deixam ficar pedaços

pelos dedos que as tocam.

Em seu vôo de ideal,

deslumbram olhos,

atraem as vistas:

perseguem-nas,

alcançam-nas,

detêm-nas,

mas, quase sempre,

por saciedade

ou piedade,

libertam-nas outra vez.

Ela, porém, não voam como dantes,

ficam vazias de si mesmas,

cheias de desalento...

Almas e borboletas,

não fosse a tentação das cousas rasas;

- o amor de néctar,

- o néctar do amor,

e pairaríamos nos cimos

seduzindo do alto,

admirando de longe!...

 

REFLEXÕES IV

Eu sinto que nasci para o pecado,

se é pecado, na Terra, amar o Amor;

anseios me atravessam, lado a lado,

numa ternura que não posso expor.

 

Filha de um louco amor desventurado,

trago nas veias lírico fervor,

e, se meus dias a abstinência hei dado,

amei como ninguém pode supor.

 

Fiz do silêncio meu constante brado,

e ao que quero costumo sempre opor o que devo,

no rumo que hei traçado.

 

Será maior meu gozo ou minha dor,

ante a alegria de não ter pecado

e a mágoa da renúncia deste amor?!...

 

INCENSO

A Olavo Bilac

Quando, dentro de um templo, a corola de prata

do turíbulo oscila e todo o ambiente incensa,

fica pairando no ar, intangível e densa,

uma escada espiral que aos poucos se desata.

 

Enquanto bamboleia essa escada e suspensa

paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata,

e por ela a subir numa fuga insensata,

vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.

 

O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando

arde o incenso ... Um rumor ondula, no ar se espalma,

sinto no meu olfato asas brancas roçando.

 

E, sempre que de um templo o largo umbral transponho,

logo o incenso me enleva e transporta minha alma

à presença de Deus na atmosfera