8 de março de 2014

Um estouro de ironia, ou seria de dor?

Escolher o título de qualquer texto, às vezes, é mais difícil do que escrever o próprio texto. Sou fanático por capas de livro, mas também sou daqueles leitores que buscam uma relação entre o conteúdo do livro e o nome que lhe fora dado, pura besteira, mas o nome pode fazer a diferença na hora da compra, pelo menos para mim, que não compro livros por sinopses. Sou daqueles que espera que o livro faça a escolha. Espero seus flertes, que ele, aos poucos, surja, aqui e ali, dizendo o melhor momento de ser lido.Com o livro de Thiago Roney foi um pouco diferente. Uma pilha de livros me esperava (ainda espera) para ser lida quando o livro com um cavaleiro na capa me chegou. Como é de costume, e quem acompanha minhas resenhas sabe, sempre leio as primeiras páginas de qualquer livro que me chegue, seja ele o gênero que for.

O livro O estouro da artéria de um cavalo húngaro me chamou atenção pelo nome, essa é a mais pura verdade. Folheei as primeiras páginas e resolvi ler o primeiro conto. E o problema foi esse, começar a lê-lo. Depois que li o primeiro, intitulado O caçador de made in’s pude perceber que apesar de trazer temas como a morte, o tema em questão tinha algo de irônico. Daí, dei a chance. Li o segundo conto e senti que, talvez, naquelas narrativas curtas, que acabavam de se apresentar, poderia estar a fagulha que me faltava para voltar a ler contos, assim como faltava a vontade de viver (seria isso mesmo) da mãe que deixou os filhos com uma carta suicida, em O coágulo emoldurado de mamãe.

Aos poucos fui percebendo que a escrita de Thiago Roney não se perdia em embaraços linguísticos, tentando criar nada novo, e nem tentava confundir a cabeça do leitor, dando voltas mirabolantes que não querem dizer nada. Apenas mantém tudo muito “sério” e direto, mostrando as possibilidades que o ser humano tem de enfrentar quando misturado à dor e ao sofrimento do mundo. Nunca esquecendo o ar da ironia como acompanhante em seus contos.

As cenas que vão se montando, a cada conto, mostram que naquelas realidades – que poderiam ser notícias de jornais ou histórias contadas por nossos vizinhos – vão se tornando algo fantasioso com a ajuda de certos suspenses que nos deixam muitas vezes pressupondo o fim da história, como os dois irmãos que viviam brigando até chegar a malfadada hora da morte, mais uma vez, em Domingo, o quintal de enterrar sonhos.

Fiquei a lembrar de alguns livros com certo realismo fantástico, principalmente por visualizar grandes cenas como o gozar de Joana, que ao trair o marido gozava borboletas, em O gozo sem vida de Joana:

Transaram na cama e depois sobre a pia do banheiro. Então, Joana gozou. Não o gozo de antes, quando Raimundo estava vivo. Mas um gozo estra-nho, fraco, triste; sem pudor, sem vida e sem adultério. Atordoado, José viu as borboletas, que voaram novamente para fora dela em forma de espiral, mas só que dessa vez numa aquarela de sangue.

As narrativas, que vão desde o suicida – que não conseguia aceitar que o trabalho dignifica o homem – até o assassino rico – que era filho de peixeiro, mas que não gostava de comer peixes com espinhas –, possuem temas que estão relacionados. A morte, a loucura, o suicídio, a raiva são elementos que podem ser encontrados em qualquer cidadão comum e que possuem consigo certa carga dramática, quando não irônicas.

As histórias são contadas por diferentes personagens, que participam diretamente das ações, e que por ora se mostram indiferentes ao que aconteciam ou preocupados com o futuro de seus amantes, amigos, familiares. Vendo isto, percebi que que o escritor manauara se difere de muitos escritores contemporâneos que começam a ser enquadrados no que boa parte da crítica literária atual tem chamado de Autoficção.

Esse novo “gênero” não pode ser mencionado em relação ao autor de O estouro da artéria de um cavalo húngaro, que, com muita desenvoltura, consegue manter os doze contos do livro com a mesma carga de intensidade utilizando o suspense como um dos principais motivos ao lermos certos contos, como em A doença do mundo.

Fiquei, ao ler o livro, esperando um deslize do autor para que eu pudesse apontar em qual narrativa ele havia deixado a desejar, não por procurar os defeitos da obra, mas por não acreditar que Thiago Roney era um escritor estreante e que havia conseguido me deixar com os olhos presos nas linhas que iam surgindo.

O mundo que é representado no livro é a mais pura realidade. Apesar das metáforas construídas e das passagens fantásticas, o que é representado mostra o âmago da sociedade humana, tudo em meio ao tom de ironia que é criado pelo autor, que se faz presente nas histórias, principalmente, em O afetuoso teorema de Martín.

Naquela, ironicamente, Martín, um “louco” teria rasgado a solução de um teorema matemático, que valia um milhão de dólares, na frente dos pais e do irmão, que não lhe davam atenção, não criam em suas “teorias” e maneiras de viver. Ele, Martín, acabaria por ser chamado de filho da puta pelo próprio irmão, por ter feito aquilo, por ter morrido sem deixar algo valioso para a família:

Não sei dizer o que mamãe pensou naquele momento, muito menos papai, mas eu só pensava que Martín era um grande filho da puta.

Percebe-se que o humano não se faz presente, num sentido em que devemos sentir a perda de um familiar, de um sentir, mas sim que o capital, ou a possibilidade de tê-lo, é o que realmente importa e o que pode nos dar, talvez, uma salvação.

Já em O dia em que eu quis afogar o mundo no rio Negro a dor e a ironia, mais uma vez, se fazem presente ao mostrar um menino que culpa a mãe por, aparentemente, não se importar com a doença do pai. Porém, quando o pai começa a melhorar, o menino percebe que ele cutuca com um alicate o pé, até que lhe saía o sangue. Fica, portanto, sem entender. Quando o pai, ao voltar do hospital, confessa-lhes, a ele e à mãe, que fez aquilo para fugir do inferno, ou seja, do local de trabalho, pois deseja ficar o tempo que for possível perto da família, pode parecer estranho, mas a maneira como Roney conta essa passagem é capaz de nos fazer rir, e deixar passar despercebido a crítica ao sistema capitalista implantado na sociedade:

Papai chamou o mundo do Distrito de inferno, de merda. Sabia que o mundo de lá não prestava. Eu estava certo. Depois que ouvi aquilo de sua própria boca, não pensei duas vezes, deixei o prato com miojo na mesa e fui, imediatamente, ao quarto do papai atrás da caixa de ferramentas. Comecei a procurar um alicate. Eu sabia que ele tinha dois. Procurei, procurei até que encontrei. Fiz questão de guardá-lo numa caixa debaixo da minha cama. Como o mundo do Distrito não é uma palafita, eu precisava me prevenir para quando fosse adulto como papai. Tinha, de alguma maneira, de guardar a arma que me salvaria no futuro de todos os males de lá, daquele mundo do outro lado do centro, o mundo do Polo Industrial de Manaus.

Tais narrativas mostram como é irônico viver num mundo em que o principal não é o ser humano, mas sim a força de trabalho, o dinheiro, o cotidiano, o hábito de se desumanizar. Talvez não tenha sido esse o foco do autor, talvez não tenha quisto mostrar o quão engraçado podemos ser ao enfrentar nossas dificuldades e o quanto podemos ser ridículos ao enfrentar nossas dores.

Há quem diga, com muita firmeza, que não se faz uma literatura “boa”, atualmente. Apesar de já ter concordado com tal afirmativa, começo a duvidar de mim mesmo, pois tenho lido poucos, é verdade, mas satisfatórios textos que começam a mostrar que ainda há rumos desconhecidos na literatura brasileira atual.

Quanto aos rumos a serem tomados, eu diria que por onde enveredou Thiago Roney deveriam se enveredar tantos outros escritores e ver na sua literatura o que poderá ser chamado de O estouro da artéria de um cavalo húngaro.