11 de dezembro de 2013

A poética corporal em poemas de Arnaldo Antunes

Arnaldo Antunes certamente é mais conhecido como músico. Consta em sua lista de participações musicais além de sua carreira solo, a participação no grupo de rock Titãs, o envolvimento com Os Tribalistas, o projeto de musica infantil Pequeno Cidadão e mais recentemente o trabalho desenvolvido com Edgar Scandurra e Toumani Diabate no projeto intercontinental A Curva da Cintura. Além de músico Arnaldo possui excelentes trabalhos envolvendo artes visuais e poesia e será sobre este último item, a poesia, que irei abordar neste ensaio, em especial a maneira que Arnaldo utiliza o corpo como fonte poética de criação.

O corpo possui o suporte necessário para a construção poética, não é de hoje que os poetas fazem essa construção-poética-corporal. Esse recurso construtivo vem sendo bastante frequente na literatura mundial pós-moderna, onde o corpo é parte da gênese literária. Neste ensaio será estudada a maneira que Arnaldo utiliza o corpo (imagem) com a palavra (poema). Mas antes de entrar nesse assunto, é interessante ressaltar o comentário que o poeta faz sobre a utilização da PALAVRA em sua poética:

Eu acho que a poesia é o lugar onde a forma ganha significado. Como se as palavras, no seu sentido de dicionário, fossem uma intermediação entre nós e o mundo, elas, não impedindo, mas estariam intermediando nosso contato direto com as coisas. Então, entre eu e a mesa tem a palavra mesa, e isso faz com que a gente tenha um recorte cultural da realidade. E na poesia, de certa forma, ela perde essa ação de afastamento da realidade sensível. Ela deixa de dizer as coisas para ser em si uma coisa. Ela se coisifica. E assim ela passa a ser uma via de acesso mais direta à experiência. Ela, sendo uma realidade, passa a ser uma possibilidade de trazer o contato da gente diretamente com a realidade. Ela apresenta uma situação mais do que ela substitui uma situação. Ela possibilita, dessa forma, uma alteração dos sentidos e da consciência das pessoas. E isso é uma das motivações do meu trabalho

Faz parte da poética concretista o trabalho da imagem e da palavra nessa poética, a palavra acarreta o sentido de mundo, ou seja, a poesia concreta utiliza-se primordialmente da estrutura visual (imagem) e acústica (palavra) aliadas ao espaço gráfico da página em branco. É importante deixar claro que Arnaldo não se considera um poeta concretista, nem tenho por prioridade afirmar isso neste ensaio, o poeta afirma que aprendeu a compor poesia estudando os preceitos concretos. Portanto a poética concretista faz parte da arte de escrita de Arnaldo.

O corpo, em sua obra poética, aparece de várias maneiras na sua estrutura de construção. Como no poema boceta que aparece no livro 2 ou + corpos no mesmo espaço (1997):

Da entrada a entranha
dessa eterna
morada
da morte diária
molhada
de mim
desde dentro
o tempo
acaba

A forma em que o poema se apresenta, lembra o formato da vagina, essa parte compreende a forma/imagem que o poema propõe a transmitir também no seu conteúdo. O título do poema nos mostra uma linguagem popular, isso compreende a linguagem que os concretistas pretendem passar, que é a inclusão da linguagem popular com a erudita, percebe-se ainda na primeira parte desse poema a descrição da vagina por dentro, atiçando assim não somente o imaginário do leitor, mas também a sua libido. Na segunda parte do mesmo poema boceta, o poeta apresenta a vagina durante a relação sexual:

entre lábio e lábio
de mucosa rósea
que abro
e me abra
ça a cabe
ça o tronco
o membro
acaba
o tempo

O verso “entre lábio e lábio” lembra o contado da língua parte da boca, com a “língua” parte dos grandes lábios vaginais. No trecho “que abro/e me abra/ça a cabe/ça o tronco” lembra o momento da penetração sexual, “o membro/acaba/o tempo” remete ao êxtase sexual. A falta de pontuação no poema (ponto-final, vírgulas) pode significar a quebra da percepção do tempo quando se está tendo relação sexual. O poema traça no imaginário do leitor pela forma e conteúdo, transformando a palavra em imagem e ação. Toda essa percepção é captada pelo olho-leitor, que também faz parte do resultado textual, pois a poética pós-moderna lança a ideia de interatividade leitora-visual no livro.

Um livro em especial na obra de Arnaldo Antunes apresenta bastantes traços imagem/verbal (ou corpo/palavra) esse livro chama-se Et Eu Tu que conta com a co-autoria da fotógrafa Márcia Xavier. Nessa obra os poemas recebem o imaginário através das fotografias, ou seriam as fotografias que recebiam o imaginário através dos poemas? Sobre essa questão Leandro Nunes e Rita de Cássia Souza em seu artigo A poesia visual no livro Et Eu Tu, fazem um comentário bastante pertinente sobre esta obra corporal-palavresca:

Quando observamos o livro como um todo, verificamos que a passagem de uma imagem e de um texto para outro se dá por meio de uma associação temática, em que a categoria semântica que rege todo o livro é totalidade x parcialidade. A relação entre o texto e o plástico se dá também através do contraste de diferentes temas; ora por um aspecto formal, como o ritmo de um poema. Essa passagem de uma imagem e de um texto a outro, gera novos sentidos, como se toda a seqüência do livro fosse um grande poema visual.

Tal “associação temática” entre imagem e palavra, pode ser percebida em vários poemas, mas analisemos o poema asa de pé, em que o pé é poetizado:

A fusão imagem/palavra é nítida tanto na fotografia quanto na estrutura do poema, pois se percebe a intenção de imitar a posição do pé na forma em que o poema foi construído, além também de imitar a posição de asas abertas no momento do vôo dos pássaros. Alias, o pé e o poema voam no espaço universal do papel. Ainda no livro existe um poema erótico Desse planeta, nesse poema descritivo o poeta através do recurso palavresco descreve e contempla as partes intimas de uma pessoa inominável, podendo ser a de sua musa ou não:

repara no lilás
da teta
e no verde escuro
da parte interna
da boceta.
o bojo das nádegas
de azul redondo,
vê?
o olhar subterrâneo,
a luz
do ânus,
a mucosa exposta
em rosa
atrás
da transparência,
a diferença?
repara no prata
dessa greta,
crê?
a carne tenra,
a boca densa,
a bolsa preta

não pode ser desse planeta

A contemplação corporal faz com que o poeta se deslumbre e evoque em sua imaginação a descrição sobre o que ele contempla. O leitor ao ler tais descrições cria a imagem lida na mente, esse recurso imagético-descritivo é uma das características de grandes poetas. Em entrevista sobre o livro, Arnaldo comenta que o principal objetivo foi aproximar as linguagens, ou seja, a fotográfica e a linguagem escrita. Utilizando-se por várias vezes a percepção corporal escrita e fotografada. Outro poema que aborda o corpo chama-se Pessoa, esse poema integra o livro-disco-video Nome:

Coisa que acaba. Troço que tem fim. Sujeito. Que não dura, que se extingue. Míngua. Negócio finito, que finda. Festa que termina. Coisa que passa, se apaga, fina. Pessoa. Troço que definha. Que será cinzas. Que o chão devora. Fogo que o vento assopra. Bolha que estoura. Sujeito. Líquido que evapora. Lixo que se joga fora. Coisa que não sobra, soçobra, vai embora. Que nada fixa. A foto amarela o filme queima embolora a memória falha o papel se rasga se perde não se repete. Pessoa. Pedaço de perda. Coisa que cessa, fenece, apodrece. Fome que se sacia. Negócio que some, que se consome. Sujeito. Água que o sol seca, que a terra bebe. Algo que morre, falece, desaparece. Cara, bicho, objeto. Nome que se esquece.

Esse poema vem a trabalhar o problema das classificações e da nomenclatura, o corpo entra no espaço poético quando o poeta percebe que a essência de seu corpo esta ligada à algo que não tem nome. E o que não tem nome é vorazmente o que nós somos. A poética do corpo não para somente nesses poemas apresentados, há outras ocorrências corporais na obra musical de Arnaldo Antunes, o assunto é extenso, deixo aqui apenas um ponta-pé para outro ensaio futuro.

Obras consultadas
ANTUNES, Arnaldo. Como é que chama o nome disso: antologia. São Paulo: Publifolha, 2006.
SANTOS, Alessandra. Arnaldo Canibal Antunes. São Paulo: nVersos, 2013.
NUNES, Leandro; SOUZA, Rita de Cássia F. de. A poesia visual no livro Et Eu Tu. Estudos Semióticos, São Paulo, Nº2, 2006.